Ver com palavras, escrever com imagens

É que um escritor é um fotógrafo sem câmara. Em vez de luz usa palavras, em vez de imagens externas cria imagens internas, cá dentro, na cabeça ou no coração, dependendo do Deus em que acredita

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Shannon Stapleton/Reuters

Ver parece ser um acto simples, intuitivo, tal como respirar ou andar. Raramente nos damos conta que estamos a ver ou a respirar, a não ser, claro, quando algo funciona menos bem - como uma irritante e avermelhada conjuntivite ou uma fungada e peganhenta constipação. No meu caso, começo o dia com o mundo desfocado, reduzido a manchas de cor que me fazem ir buscar as lentes de contacto com a pressa de quem acabou de comer um burrito extra-picante e agora tudo o que tem na mente é um copo de leite bem frio.

Quando comecei a fotografar não sabia ver. Ponto. Final. Parágrafo.

Assim, como muitos condutores guiam mas não sabem conduzir, eu olhava, mas não via. E todos os dias passava ao lado de um mundo que me iludia. Tinha noção disso. Sabia que a fotografia era muito mais do que focar e carregar no botão disparador mas não fazia ideia de como lá chegar. Existem vários truques para treinar o olhar, a composição e o momento decisivo bressoniano, sim, mas não era isso que procurava. Nessa altura procurei respostas e encontrei-as. Não nas fotografias mas nos livros.

É que um escritor é um fotógrafo sem câmara. Em vez de luz usa palavras, em vez de imagens externas cria imagens internas, cá dentro, na cabeça ou no coração, dependendo do Deus em que acredita.

As descrições que tantos alunos do secundário fugiam a sete pés ensinaram-me a ver. De Eça a Tom Wolf, de Tolstoi a João Aguiar. As suas descrições eram, por assim dizer, a programação, o código, por detrás da imagem. As letras, palavras e frases codificavam as imagens que eles viam e que depois apareciam, como que por magia, na minha mente.

A verdade é que tive a sorte de ter bons professores. Não sei se fui eu que os escolhi ou eles a mim, mas isso agora, é o que menos interessa.

Por isso, quando desviava o olhar do livro e via a realidade a desenrolar-se à minha volta, via-a com outros olhos. Quais eram as cores que mais chamavam a atenção, quais eram as fontes de luz e como era a luz que jorrava delas, dura ou difusa, branco-quente ou frio? Que sombras existiam naquele cenário, e que reflexos? Que padrões, simetrias e assimetrias conseguia ver? Depois das palavras impressas a preto e branco era um admirável mundo novo que se formava à minha frente.

Ainda hoje sinto esse deslumbramento quando olho pela janela logo de manhã e as cores de um novo dia começam a surgir. Sei que por debaixo dessa superfície visual está um oceano de palavras e imagens à espera de serem descobertas. Um novo dia, uma nova vida, uma página de papel em branco, um novo ficheiro de imagem por criar. 

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