Jazz hot em Guimarães

O Guimarães Jazz entra no seu 23º ano com pujança e vitalidade criativa, reafirmando-se como um dos grandes festivais de jazz da Península Ibérica.

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Lee Konitz
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Uri Caine
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Reut Regev
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Eirik Hegdal & Joshua Redman

A segunda semana do Guimarães Jazz 2014 permitiu confirmar uma cada vez maior popularidade do festival para lá das fronteiras nacionais e uma surpreendente adesão do público, ficando marcada pela presença e prestação do lendário Lee Konitz.

Actualmente com 87 anos, em visível grande forma e com um sentido de humor contagiante, Konitz surgiu em palco com um som luminoso e uma articulação de frases absolutamente cativante, de tal forma que a sala se enchia de música (e alma) cada vez que o saxofonista começava a tocar.

Esse foi aliás um dos motivos para que se sentisse uma diferença tão acentuada relativamente à prestação algo anémica da secção rítmica que o acompanhava, nomeadamente Jeremy Stratton no contrabaixo e Georges Schuller na bateria. Apenas Dan Tepfer, no piano, conseguiu estar ao nível de excelência do líder, acompanhando todos os seus movimentos e respirações. Às primeiras notas de Solar, tema escolhido para abrir o concerto, Konitz arranca de imediato com uma abordagem intuitiva e orgânica, tocando apenas o essencial, com beleza e precisão, e procurando não quebrar o fluxo de comunicação com os jovens músicos que o acompanhavam. Mas, enquanto Stratton e Schuller optaram por uma abordagem reverencial e académica, parecendo por momentos que não queriam aumentar a intensidade da música para não "cansar" Konitz, Tepfer conseguiu com sucesso acompanhar toda a dinâmica do saxofonista, imprimindo intensidade e profundidade às suas notas.

Foi ele, assim como Konitz, o responsável pelos momentos mais fortes do concerto, como aconteceu ao terceiro tema, numa versão de Kary's Trance (original de Konitz) com um belíssimo e vibrante solo de piano. Mas estavam reservados para o fim os momentos mais marcantes do concerto, primeiro com uma versão memorável do clássico Subconscious-Lee, com Konitz a mostrar porque é considerado um dos músicos mais influentes de sempre no jazz, e depois, já no encore, com uma versão em duo de sax e piano para Skylark, momento mágico e magnético em que percebemos que o concerto poderia ter sido apenas isso, um duo entre dois músicos com uma rara empatia musical.

Mas antes de Konitz, a semana havia já começado com o quarteto de Reut Regev (trombone), Taylor Ho Bynum (trompete e cornet), Adam Lane (contrabaixo) e Igal Foni (bateria), formação responsável pela realização das oficinas de jazz e pela dinamização das jam sessions. Formado por quatro experientes (apesar de jovens) músicos nova-iorquinos, este projecto trouxe-nos uma música bem equilibrada entre tradição e modernidade, com arranjos inventivos e composições vibrantes, assinadas por todos os membros do grupo.

Mas o grande trunfo que ditou o sucesso da música foi a diversidade, de personalidades músicais e de abordagens à música. Se Regev e Lane revelam um pendor natural para um deep groove, fortemente influenciado pelo rock e pelo funk, já Bynum opta por uma linguagem mais angular e abstracta, revelando as suas ligações à doutrina de Braxton, de quem é um colaborador regular. Quanto a Foni, companheiro e colaborador de longa data de Regev, trata-se de um baterista clássico, no que o termo tem de bom. Muito atento e sensível, nunca se impõe pelo poder natural do seu instrumento, mas sim pela profunda interacção rítmica com os outros instrumentistas.

Um saudável e fascinante equilibrio de personalidades, que funcionou particularmente bem em Hula Hula, de Regev (com 2 grandes solos de Regev e Bynum), e Sanctum, de Lane (com um memorável solo, lírico e invulgarmente melódico de Bynum). Lane, que editou este ano o excelente Live in Ljubljana (Clean Feed), foi também quem assinou alguns dos momentos mais fortes da noite, com solos poderosos e inventivos que não deixam ninguém indiferente. Para o final, já no encore, uma versão explosiva de Ashcan Rantings, tema já clássico de Lane.

No dia seguinte, perante uma sala completamente cheia, assistiu-se a uma das grandes surpresas do festival, a actuação do trio de Uri Caine, acompanhado por Mark Helias, no contrabaixo, e Clarence Penn, na bateria. O pianista, consagrado como compositor e conceptualista, opta habitualmente por prestações intimistas e algo austeras, fortemente influenciadas pela música erudita. Ora, o que aconteceu na passada quinta feira foi uma enorme festa de jazz clássico, super hot, swingante e envolvente, baseado em grande medida na comunicação telepática entre Caine e o enorme contrabaixista que é Helias. Apenas Penn teve uma prestação pouco consistente, algo errática, sem no fundo perturbar a grande festa de Caine e Helias.

Foram evocados os musicais da Broadway e toda a tradição Tin Pan Alley da canção popular norte-americana, surpreendentemente através de originais do próprio Caine como Loose Trade, Meshuggah, Smelly (dedicado com humor a um dos vizinhos do pianista) ou Catto's Lament. Destaque ainda para uma versão poderosa de Round Midnight, de Monk, e para a poesia de Without a Song, de Jerome Kern, a fechar o concerto.

Para o último dia, sábado, estava reservada a grande desilusão da semana, com a actuação da Trondheim Jazz Orchestra, dirigida por Eirik Hegdal, tendo como solista convidado Joshua Redman. Aclamada como uma das formações orquestrais mais importantes do jazz norte-europeu, a TJO surgiu aqui com um desiquilíbrio acentuado entre os músicos que a compõem, destacando-se de forma notória o trabalho de Ole Morten Vagan, no contrabaixo, Ola Kvernberg, no violino, Eivind Lonning, no trompete, e Nils Olav Johansen, na guitarra e banjo (o baterista, Tor Haugerud, destacou-se pela negativa).

Com arranjos inovadores e complexos, extremamente exigentes, os problemas começaram a surgir pelo facto de nem todos os músicos conseguirem responder da mesma forma ao desafio, não havendo um destaque claro e deliberado aos solistas mais fortes, nem mesmo a Joshua Redman, cujo som acabou por ficar demasiado integrado no som geral da orquestra. De Redman, que surgiu com um discurso ágil e incisivo, como seria de esperar (destaque para o solo no tema New Blues), ficou no entanto a ideia de alguma fragilidade no som, pouco consentânea com a sua estatura como improvisador. Absolutamente poderoso durante todo o concerto esteve Vagan, assinando um dos grandes solos da noite em Re-Marc I Made (To Marc Johnson), confirmando que é actualmente um dos nomes a seguir no jazz europeu. Já no final, como encore, a Orquestra tocou uma versão luminosa de Adagio (Bach), na qual brilhou o trompete de Lonning.

O Público viajou a convite da organização do festival

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