Introdução à economia de perder

Os poemas de Inês Dias fiam-se com a subtileza de um refúgio para a vida

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Na escrita de Inês Dias, a ideia de recomeço dá sentido a uma poesia e a uma relação com a vida — e a vida é o que está em causa quando é de poesia que se trata Miguel Manso
Da Capo

reúne os livros até agora publicados por Inês Dias —

Em Caso de Tempestade Este Jardim Será Encerrado

(Tea For One, 2011),

In Situ

(Língua Morta, 2012),

Um Raio Ardente e Paredes Frias

(Averno, 2013) — e a plaquete

Tempos Vários

(Paralelo W, 2014). Recolhe ainda poemas dispersos anteriormente divulgados nas revistas

Piolho

,

Telhados de Vidro

e

Bíblia

, além de dois poemas inéditos:

Ponto Sombra

e

La Belle et la Bête

. Este livro, apesar de indícios em contrário, não configura uma poesia completa. Por não ser esse o seu perfil, nem, decerto, o momento. Nem talvez seja esta a autora indicada para o fazer. Há nela mais ascese e aspereza — “Tudo/ é trevas, instável equilíbrio/ entre matéria e energia escuras” (p. 114) — do que a placidez necessária a construir integrais de fácil arrumo. O que sucede, na junção destes poemas, forma uma relação forte com o título da recolha. Tanto a expressão

da capo

— recomeço do início até ao fim, com ou sem variações —, como a epígrafe geral do livro, elegantemente constituída por uma pauta com a indicação

dal segno al coda

— recomeço de um sinal indicado em pauta até ao outro sinal —, são, naturalmente informações musicais. Mas são, igualmente, indicações de que um recomeço é, nesta poesia, um começar de signo perpétuo que dá sentido a uma poesia e a uma relação com a vida. E é a vida o que está em causa, se é, de facto, de poesia que se trata. Estes gestos marcam opções, estabelecem universos de referências, mas, sobretudo, agem em relação ao desenvolvimento deste notável conjunto de poemas, que, por sua vez, reagem a essas solicitações temáticas e existenciais — “Não deixei a música até perceber/ uma rendição em cada final:/ a morte que aguardava o baixar / dos meus braços e o reacender das luzes/ para reclamar o seu rebanho de sombras” (p. 37).

Os poemas surgem dispostos mediante os livros em que saíram, mas foram submetidos a cortes (por vezes, assinaláveis), houve neles mudanças, e foi alterada a sua disposição dentro de cada livro prévio — salvo no caso de Um Raio Ardente e Paredes Frias. A arrumação dos textos permite tentar adivinhar um gesto que propende para uma poética do recomeço. Para a montagem, na própria forma de estruturar as matérias, de algo que tem, necessariamente, de tornar ao ponto inicial, para se perceber (ou nunca mais), para se consumar. Pense-se, por exemplo, que, na secção final de Da Capo, Primeira Memória, o símbolo musical de recomeço integra mesmo um dos poemas desse núcleo. E a secção abre com uma expressiva epígrafe do músico brasileiro Cartola: “Volto ao jardim/ Com a certeza que devo chorar”. Se qualquer escrita se pode reclamar desse pendor, pois sempre devém reescrita, na poesia de Inês Dias é particularmente premente esse condão. Alguns poemas dão-nos indícios disso mesmo. Como, desde logo, o que abre o volume, Rua da Infância, onde aquele tempo é apresentado através da expressão “manhã eterna da minha/ infância” (p. 11), ou um poema em que se conclui por um “livro regressado” (p. 18). Como se nunca ficássemos a saber se somos nós que tornamos àquele objecto privilegiado, ou se há algo nele que, prodigiosamente, concebe retornos.

Das áreas que compõem Da Capo, nasce uma tendência para uma harmonia que, ao longo do livro, revela, de forma enérgica e plena de sentidos, interconexões que se vão tornando discerníveis. Por exemplo, o conjunto In Situ divide-se em duas secções: A Morte e E as Estátuas. A copulativa da segunda imprime um sentido definido e torna inextricáveis as duas zonas do conjunto. Do mesmo modo que, em Tempos Vários, a cada poema cabe uma citação de Iris Murdoch, algo que produz uma inadiável noção de unidade, num padrão de luzes e trevas, de calor e frio que se arquitecta em contrabalanço com as sibilinas palavras daquelas epígrafes.

E, contudo, o carácter informado desta poesia não se estabelece primordialmente pela via da citação — tanto mais que as epígrafes, na sua sobriedade, surgem muitas vezes de forma elíptica, quando não truncada —, nem tão-pouco pela alusão, mas por uma espécie de miscigenação entre o território do outro e do eu. Esta circunstância não significa um acto de extirpação, mas revela um dos rostos que a amizade conhece. E esse estado (mais do que sentimento) é um dos valores mais exaltados nestes versos — de resto, tão pouco dados a exaltações. O que implica que a simples rotação do singular para o plural deixe de ser uma simples operação da gramática para passar a integrar uma fusão entre poética e ética de vida — “E escrevemos como vivemos,/ na espuma ou nos vidros embaciados/ da cidade, com a teimosa convicção de que/ nada ficará — nós não ficaremos” (p. 53). Essa intervenção faz rodear de especial valor simbólico um verso como “Sabemos finalmente quantos somos” (p. 22), que se torna um galardão e uma insígnia. Sob a aparência de uma coloquial aritmética, esconde-se uma visão de mundo. Uma em que há conjurados e bárbaros que pertencem ao sujeito poético.

O que é extraordinário nesta poesia é que um mecanismo tão revisitado quanto o do espelhamento do eu nos objectos com que o sujeito contacta alcance expressão tão nobre. O que sucede porque Inês Dias se posiciona para lá da mitologia romântica, invertendo os sinais de uma operação de identificação e conhecimento do mundo. Enquanto um romântico conceberia um eu absoluto, irredutível (interpretação sui generis de Fichte), apesar das tempestades da psique, e partiria de si para se impor, diríamos, ao mundo (na senda de um Herder), esta poética concebe um movimento distinto. Parece partir para o mundo e para os outros para se (re)conhecer neles. Essa relação, esse trajecto para o mundo, é outro dos eixos fundamentais que se poderiam propor para entender esta poesia. Leia-se a já referida secção E as Estátuas, em que cada local público alberga uma peça de estatuária que se torna o átrio de uma revisitação sempre parcimoniosa de biografias que se desfiam com a subtileza de um refúgio para a vida.

Esta poesia procura com sucesso não cometer o “excesso de palavras” (p. 64) de que fala o poema Valsa Sombria; ela possui um acerto que é uma alquimia invulgar entre léxico e prosódia. Há nela uma dicção corrente que nunca se polariza demasiado perto de uma discursividade rasa. Porque se auto-mutila, com infinita sabedoria, produzindo elipses, encavalgamentos que manejam a respiração e o verso, como dedos sábios que quase estrangulassem um pescoço a tentar cantar a totalidade de uma frase (no sentido verbal e musical). Estes tropos pouco felizes são um estratagema deliberado, com o qual se pretende fazer uma aproximação a uma poética que transmite a sua verdade através de uma imagética frequentemente recuperadora do terror romântico — “Quero um amor que tenha

a lealdade de um cancro” (p. 46). Daí que a morte não seja emblema, nem metáfora, mas constatação e pórtico da própria vida. Limite, mas também ponto de partida. Porque é a partir dela que se entende a concepção de vida que perpassa por estes versos. Segundo ela, não há como destrinçar entre ambas — “Continuar do lado/ de fora da morte,/ que é o único lado da vida/ onde te sei ainda” (p. 89).

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