Sérgio Godinho: uma vida livre ao espelho

Estreia dupla para Sérgio Godinho: um disco, Liberdade, gravado ao vivo pelos 40 anos do 25 de Abril, e um livro, Vidadupla, com nove contos por onde a liberdade também passa.

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Enric Vives-Rubio

O seu regresso definitivo do exílio, em 1974, fez-se directamente para o teatro, para uma peça intitulada Liberdade, Liberdade, versão portuguesa de um original de Flávio Rangel e Millôr Fernandes, estreado no Rio, no Teatro Opinião, em 1965. Uma liberdade "dupla"...
É verdade. Vim como actor, substituir o Luís de Lima. Éramos três actores, dois monstros com uma rodagem enorme, a Maria do Céu Guerra e o João Perry, e eu, com uma rodagem muito limitada [Teatro Universitário do Porto, Hair, Living Theatre, etc.] mas que me agarrei àquele desafio. Foi o Zé Mário Branco, que era o director da parte musical, que me contactou. Havia músicas dele, do Fausto, clássicos da música internacional e um cantor, o Carlos Cavalheiro (que depois convidei para o disco A Boca do Lobo). Eu tinha estado cá em Portugal, em Maio, e tinha programado uma viagem à Europa. Caí no caldeirão dos cantos livres, e ainda bem, e o primeiro em que estive foi curiosamente no São Luiz, onde este ano estreei Liberdade. Mas ainda planeava voltar ao Canadá, a Shila estava grávida, a Jwana (a minha filha mais velha) ia nascer em Julho e eu era considerado refractário, portanto não sabia se podia sair e voltar. Mas garantiram-me que sim e, em Setembro, quando o Zé Mário me lançou esse convite para a peça, disse: "Fazemos já as malas e ‘tchau’ Canadá".

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O seu regresso definitivo do exílio, em 1974, fez-se directamente para o teatro, para uma peça intitulada Liberdade, Liberdade, versão portuguesa de um original de Flávio Rangel e Millôr Fernandes, estreado no Rio, no Teatro Opinião, em 1965. Uma liberdade "dupla"...
É verdade. Vim como actor, substituir o Luís de Lima. Éramos três actores, dois monstros com uma rodagem enorme, a Maria do Céu Guerra e o João Perry, e eu, com uma rodagem muito limitada [Teatro Universitário do Porto, Hair, Living Theatre, etc.] mas que me agarrei àquele desafio. Foi o Zé Mário Branco, que era o director da parte musical, que me contactou. Havia músicas dele, do Fausto, clássicos da música internacional e um cantor, o Carlos Cavalheiro (que depois convidei para o disco A Boca do Lobo). Eu tinha estado cá em Portugal, em Maio, e tinha programado uma viagem à Europa. Caí no caldeirão dos cantos livres, e ainda bem, e o primeiro em que estive foi curiosamente no São Luiz, onde este ano estreei Liberdade. Mas ainda planeava voltar ao Canadá, a Shila estava grávida, a Jwana (a minha filha mais velha) ia nascer em Julho e eu era considerado refractário, portanto não sabia se podia sair e voltar. Mas garantiram-me que sim e, em Setembro, quando o Zé Mário me lançou esse convite para a peça, disse: "Fazemos já as malas e ‘tchau’ Canadá".

Quarenta anos depois, como foi recriar a ideia de liberdade num espectáculo musical?
A liberdade era o conceito que atravessava essa peça, assim como foi o conceito que atravessou o 25 de Abril, não é por acaso que se chama Dia da Liberdade. Para mim, a liberdade, que agora dá nome a este disco ao vivo, é pedra de toque na minha vida. Todos os meus gestos têm de ter essa procura — liberdade responsável, é evidente, mas que só toma sentido, como eu digo na canção, se os seus conteúdos forem preenchidos. Por isso é que eu falo da paz, do pão, habitação, saúde, educação... e podia acrescentar a justiça e outras coisas mais. São conceitos pelos quais é preciso lutar, para que adquiram plenos sentidos.

Na escolha dos temas do disco, há uns que se relacionam com a liberdade política, mas há outras maneiras de lidar com a liberdade: a da Etelvina, a do fugitivo, a das praxes...
Quando me foi feito o convite para fazer um espectáculo pensando nos 40 anos do 25 de Abril, o nome que me veio à tona foi logo essa palavra: Liberdade. E todas estas canções exploram de certo modo esse sentimento, essa ânsia de liberdade. O inédito Tem o seu preço, que escrevi este ano para o Teatro Praga, tem uma frase que é "andar à solta, criar laços nesta vida". Quando falei de liberdade responsável, não é aquela coisa certinha nem politicamente correcta. É a liberdade individual, o "andar à solta"; e o "criar laços nesta vida", que é a liberdade colectiva que devíamos procurar nas nossas relações com os outros. No caso das praxes, Maçã com bicho é mesmo uma interrogação sobre a liberdade, a submissão, o "humor" da humilhação (que é a essência das praxes). Por muito que se diga que são brincadeiras inocentes, há ali algo de muito baixo, que deforma a visão da sociedade e do mundo.

Há aqui também uma canção de José Afonso, que ele cantava mas nunca gravou, Na rua António Maria, numa referência à PIDE. Entrou por antítese à liberdade?
Essa canção reavivei-a até para outra altura, os 40 anos do espectáculo histórico de Março de 1974 em que se cantou a Grândola no Coliseu. Cantei Os Vampiros, porque me pareceu que a versão que tínhamos feito para o Caríssimas Canções era uma versão poderosa; e cantei Na rua António Maria, que eu sempre ouvi o Zeca cantar e tinha de memória a melodia. É muito ágil, tem uma ironia muito "zequiana" e fala de um branqueamento de um nome que já trazia um passado histórico, a PIDE, passada então a DGS. "Tem três letrinhas apenas/ mas outro nome lhe dão/ nesta fortaleza antiga/ só não muda a guarnição". E tem um lado muito actual, ao falar de "um novo Pina Manique/ com outra lábia, com outro tique".

E uma canção como Que força é essa?, que actualidade lhe conferem os dias de hoje?
Ouve-se muito em manifestações colectivas, ainda. É o estar acordado e não usar a força que se tem a não ser para o conformismo, para a submissão. Vê-se na razia nas obrigações sociais deste Governo, que já vem de trás, e no desemprego, que deixa tanta gente sem perspectivas. Impressiona-me o desemprego jovem, mas ainda mais o das pessoas que já têm mais idade e que não têm a mesmo capacidade de regeneração que um jovem pode ter.

Curiosamente, no seu livro Vidadupla o desemprego está presente nalgumas personagens.
É preciso dizer que este livro, que são nove contos, é sempre narrado na primeira pessoa: homens, mulheres. No caso do conto Queria só falar da minha história de amor, a mulher que o narra é uma boa trabalhadora, tem brio no que faz e não compreende que outros não possam ser tão competentes ou tão briosos como ela. E é conflituosa nisso. Ao mesmo tempo tem uma história de amor com outra operária, começam a viver juntas. Uma das coisas que é humilhante para ela é quererem-na despedir sendo ela boa trabalhadora.

Sim, e falam em quotas nos despedimentos: "de bons, médios e mesmo maus operários".
É verdade, também os maus! É uma parábola, mas muito aproximada do real. É isso que faz com que ela se despeça mesmo antes de ser despedida, para não passar por essa humilhação. Mesmo sem indemnização, diz ela. Digamos que é um impulso idealista.

Nove contos, como os nove meses para um parto, nove passos para chegar a este livro. E no entanto ele foi impulsionado pelo conto Notas soltas da corda e do carrasco, verdade?
É curioso, não tinha pensado nisso dos nove. Quanto ao conto é verdade. Quando um outro o reconhece, mesmo estando ele de capuz e lhe diz ‘eu sei quem tu és’, ele, que se sentia como um operário sem responsabilidade moral perante o executado, fazendo o seu ofício ("a ética está na lei") compreende que há um dilema moral e procura uma espécie de expiação, matando ele mesmo e portanto sendo executado. Eu acho que todos estes contos, que têm sempre uma vertente simbólica, jogando sobre interrogações da vida, da morte, estão relacionados com o outro, com a descoberta do outro de um modo geral. Tentar perceber quem é o nosso espelho, o nosso outro eu, aliás há muitos espelhos nestes contos. E no trabalho de ficção que faço há também uma procura dos outros "eus". Até por excesso, no conto que talvez menos tem a estrutura de conto, é apenas uma prosa poética, Osmose. Porque esse homem não tem vida própria, só se reconhece através dos outros. Por isso é que há muitas citações, ele cita escritores amigos, cita a Cecília Meireles.

Até há uma citação de Márcia, a cantora portuguesa, da canção Camadas.
É verdade. Deve haver gente que nem sabe. Porque estão ali o Millôr Fernandes, a Cecília Meireles e depois há a Márcia: "Não fiz camadas do meu ser só para ti". É muito misterioso o processo de ficção, porque vamos descobrindo uma personagem que vai um bocadinho à frente de nós. Ao mesmo tempo que se constrói um personagem, estamos a ditar novas interrogações para esse personagem.

Nesse jogo de espelhos, são também recorrentes descrições de ausências. Logo no início, a actriz face ao lençol, como depois no desaparecimento do jovem amante do falso culpado ou no caso do morto que não aparece em O pré-catastrofista. Até mesmo o cavalo desse belíssimo conto que é O circo de três pistas, ao transformar-se numa não-existência.
Essa é também uma metáfora sobre o circo, o andar à volta e não poder sair daquela roda. É uma rapariga de circo, que nasceu ali, os pais já eram do circo. De repente, um dia, numa volta à pista, naquela vaidade mútua de receberem os aplausos, o cavalo que ela montava guina para a porta de saída, ele manda-o de volta, cai do cavalo e parte uma perna. Mas compreende que o cavalo lhe tinha mostrado o caminho de saída. E fogem, numa fuga que é quase naïve, bebendo a água dos ribeiros, como numa fábula. E de facto, aquele amor, que é carnal, toma outro caminho quando é o cavalo que procura a liberdade, que desaparece. À procura dos semelhantes. Ela fica destroçada mas conclui que mesmo que seja a liberdade de outra cerca ("a liberdade mesmo pobre e falsa") é aquela que ele escolhe.

Voltamos assim à ideia de liberdade, ao título do disco. Cruzando-a agora com o título do livro: será que a liberdade, em Portugal, tem uma vida dupla?
Quando se diz "isto está pior do que antes do 25 de Abril", é verdade que há indicadores absolutamente assustadores. Ainda agora se comparou, por causa deste Orçamento do Estado, o poder de compra dos portugueses e o que o salário real vale perante isso. Agora: não há dúvida de que vivemos num regime que tem liberdade. Mesmo cheia de constrangimentos. E cerceada de maneiras muito ínvias. Claro que se progrediu em muita coisa, como o grau de alfabetização, embora haja muitos analfabetos funcionais que acham que não são analfabetos. O que é lamentável é estarmos a repetir caminhos que pensávamos ter já deixado para trás, como a emigração, que aumentou de maneira brutal porque não há perspectivas. E isso vai para lá do problema da liberdade, tem a ver com a dignidade. A dignidade das pessoas está muito ferida. Mas elas têm de lutar com as armas da sua liberdade, a que existe, que está nelas e é preciso defender. Neste disco está o Maré Alta, a letra mais breve que já escrevi, em 1971, numa altura em que a liberdade não estava a passar por aqui, mas essa afirmação era já: a liberdade como valor existe, o solo que pisamos é livre, defendamo-lo. A liberdade é um direito e um dever. Temos é de a construir, sempre.