“Matéria branca” do cérebro é vital para aprender novas tarefas motoras
As principais células da matéria cinzenta do cérebro – os neurónios – não são as únicas células cerebrais essenciais aos processos de aprendizagem. Também são precisas certas células que fazem parte da matéria branca.
Pela primeira vez, uma equipa internacional de cientistas, entre os quais uma portuguesa, demonstrou experimentalmente que a mielina, um ácido gordo produzido por certas células da “matéria branca” – ou glia – do cérebro dos mamíferos, desempenha um papel fulcral na aprendizagem de tarefas motoras complexas.
Os resultados, que foram obtidos em ratinhos e publicados na edição com data de sexta-feira da revista Science, poderão ter importantes implicações no desenvolvimento de formas de estimular e melhorar as capacidades de aprendizagem dos seres humanos.
A mielina é o principal ingrediente do invólucro que cobre os axónios das células nervosas (as “fibras” que transportam os impulsos eléctricos e que os neurónios utilizam para comunicar entre si). É, por assim dizer, a “fita isoladora” que evita as “fugas” de corrente eléctrica nos circuitos nervosos. Aliás, quando o invólucro de mielina se deteriora, como acontece por exemplo na esclerose múltipla, surgem graves problemas motores.
Nos mamíferos, a mielina é produzida pelo cérebro e a espinal medula até ao início da idade adulta e é necessária para inúmeros processos do desenvolvimento do organismo.
As células que produzem mielina são, justamente, células da glia. “No sistema nervoso central, os axónios são envolvidos por mielina que é produzida um outro grupo de células: os oligodendrócitos. A mielina permite não só a condução rápida dos impulsos nervosos como a sobrevivência das próprias células nervosas”, explicou ao PÚBLICO a co-autora Joana Paes de Faria, do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto.
Mas o que a equipa – liderada por Bill Richardson, do University College de Londres (UCL, Reino Unido) – mostrou agora pela primeira vez, em experiências com ratinhos já adultos, é que para que esses ratinhos conseguissem aprender uma nova tarefa motora precisavam de produzir nova mielina.
“O trabalho mostra pela primeira vez que a produção de nova mielina num ratinho adulto é necessária para a aprendizagem de uma nova tarefa motora complexa” salienta Joana Paes de Faria.
Basicamente, o que acontece quando estamos a aprender uma tarefa motora complexa – como tocar um instrumento musical ou fazer malabarismos – é um reforço das ligações neuronais que, no cérebro, se activam repetidamente à medida que treinamos. E é esse reforço, essa facilitação, de determinados padrões de actividade neuronal, que nos permite, ao tornar mais eficiente a transmissão entre os neurónios envolvidos nos circuitos activados, realizar a tarefa com crescente facilidade e perícia. Ou seja, aprender… a tocar piano ou atirar pinos para o ar e apanhá-los com mestria e elegância.
Porém, até aqui, considerava-se que os axónios faziam tudo sozinhos, por assim dizer – isto é, que o reforço acontecia principalmente ao nível das sinapses dos axónios, que são os pontos onde a informação nervosa passa de um neurónio para outro.
Mas, como explica o UCL em comunicado, o que estes cientistas provaram agora é que, para a aprendizagem ser possível, também é precisa a intervenção directa, na altura do treino, de oligodendrócitos produtores de mielina situados na proximidade dos neurónios activados. Estas células, quando detectam que um sinal nervoso está a ser repetido múltiplas vezes, embrulham o circuito neuronal por onde esse sinal circula com novas camadas de mielina, melhorando o isolamento eléctrico dos axónios em causa e promovendo a aprendizagem. E mais: isso não acontece apenas na altura do desenvolvimento, mas, de facto, durante toda a vida.
É a importância da matéria branca nos processos de aprendizagem que fica assim confirmada experimentalmente. “Durante muito tempo”, diz Joana Paes de Faria, “a importância das células da glia – da qual os oligodendrócitos fazem parte –, foi subvalorizada. O que este estudo mostra é que estas células da glia desempenham um papel na aquisição de novas competências – uma função até agora atribuída exclusivamente aos axónios”.
Ratinhos acrobáticos
Para o demonstrar, os cientistas estudaram as capacidades de aprendizagem de uma tarefa motora complexa em 36 ratinhos adultos normais e 33 ratinhos em cujo ADN tinha sido acrescentado um “interruptor genético”, lê-se ainda no comunicado. Essa alteração genética permitia, em presença de tamoxifeno, substância conhecida sobretudo pela sua utilização no tratamento e prevenção do cancro – e que os cientistas podiam administrar à vontade –, desligar a produção de novos oligodendrócitos e de nova mielina (sem afectar a mielina já existente). A criação destes ratinhos transgénicos foi, aliás, o contributo de Joana Paes de Faria para o trabalho.
A tarefa que os ratinhos tinham de aprender consistia em utilizar uma roda cujos “degraus” estavam distribuídos a intervalos irregulares, ao contrário das rodas habituais que estes animais utilizam para treinar. E os cientistas observaram então que os ratinhos que eram incapazes de produzir mielina não conseguiam aprender a andar nesta roda “torta”, enquanto os ratinhos que produziam nova mielina conseguiam fazê-lo. E mais: a diferença entre as capacidades dos dois grupos tornava-se aparente ao fim de apenas duas horas de treino.
Os cientistas realizaram ainda uma segunda experiência, na qual os ratinhos geneticamente manipulados aprendiam a utilizar a roda irregular antes de os cientistas inibirem a produção de mielina pelo seu cérebro. E constataram que, quando esses animais eram novamente colocados na roda, conseguiam realizar a tarefa apesar de entretanto terem ficado incapacitados de produzir nova mielina. O que isso mostra, segundo eles, é que a mielina apenas é necessária para a aprendizagem inicial, mas não para a memorização nem a realização de uma tarefa aprendida anteriormente.
“Não retirando a importância às sinapses entre diferentes neurónios no reforço dos circuitos de aprendizagem de que estes neurónios fazem parte, este estudo sugere que a mielinização desses neurónios pode ter também um papel na capacidade de aprendizagem e memorização de uma nova tarefa”, diz-nos ainda Joana Paes de Faria.
Em particular, salienta a cientista, isto sugere que, “teoricamente, através da manipulação da capacidade de mielinização, poder-se-ia pensar em afectar a rapidez com que uma determinada tarefa é apreendida”.
Os autores pensam ainda que a produção de nova mielina também poderá estar envolvida noutros processos cerebrais, em particular cognitivos.
E quanto às doenças da mielinização? “Há ainda um longo percurso até serem encontradas todas as respostas para o tratamento de doenças desmielinizantes, mas certamente que o estudo da biologia e função das células produtoras de mielina é relevante nesse contexto”, responde-nos Joana Paes de Faria.