Meio século de pecado

É a grande sobrevivente da era em que o rock'n'roll nasceu e começou a abater os seus filhos mais queridos, levados num mar de excessos. Cinquenta anos depois, Marianne Faithfull continua a cantar a sobrevivência, o amor e a morte.

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Marianne Faithfull rodeou-se de malditos: Steve Earl, Nick Cave, Ed Harcourt, Anna Calvi, Rob Ellis, Roger Waters

Aos 68 anos, podia esperar-se que Marianne Faithfull fosse uma fera amansada, enrolada em mantinhas, com os gatos junto aos pés em frente à lareira, mas não é preciso muito para perceber que, milhares de danças com o abismo depois, ela mantém intacto um raro sentido de humor negro que pode ser arrepiante para quem a conhecer mal: “Bem, filho, agora tenho de ir que a minha assessora comprou-me um chapéu lindo”, diz a velha dama em final de conversa. “É para o funeral de uma velha amiga, mas é tão bonito, olha-me para este véu, até faz a morte valer a pena."

E depois ri-se, como se fosse um Larry David ou um Louis CK, humoristas especializados em levar-nos junto a um precipício e depois provocar-nos gargalhadas (o que pode fazer-nos cair). Faithfull ri-se muitas vezes, do mesmo modo que se irrita muitas vezes e com a mesma facilidade com que nos manda passear, antes de atirar a irritação para trás das costas: “Eu devia mandar-te foder, seu pirralho mal-educado”, resmunga a dado momento, quando, estando ela a falar de alimentação, nos ocorre perguntar se alguma vez tinha comido uma barra de Mars desde um certo incidente em 1967. “Aliás, vou mesmo mandar-te foder: vai-te foder. Pirrallho." Pausa. “És atrevido. Gosto disso. Não percas isso, filho."

Nesse ido de 1967, Faithfull deixou de ser apenas a lindíssima e virginal estrela pop que se estreou com As tears go by, tremenda canção escrita por Mick Jagger e Keith Richards e que acabou no nono lugar das tabelas de vendas, para se tornar um ícone da decadência do rock'n'roll, quando, dos relatos de um raide da polícia britânica a uma mansão no Essex ocupada pelos membros dos Rolling Stones e sua habitual entourage de drogados, saiu a anedótica revelação de que os oficiais da lei teriam dado com o vocalista dos Stones a comer uma barra de Mars encaixada, bem, encaixada numa parte do corpo de Faithfull.

Sejamos honestos: não é por Give My Love to London, o mais recente álbum da senhora, que quando hoje escrevemos Marianne no Google Faithfull é o segundo nome que o algoritmo nos devolve. É por histórias como a mencionada – no caso, uma narrativa apócrifa: estavam todos calmamente na sala a fumar uns charros quando a polícia apareceu, e Marianne estava de toalha enrolada à volta do corpo porque estivera a tomar banho, mas a lenda manteve-se e tornou-se uma das mais repetidas anedotas do universo rock'n'roll.

Give My Love To London é o quinto álbum de Marianne no século XXI, o nono de originais desde a década de 1990, o 16.º desde Dreamyn' My Dreams, de 1977, quando a dama regressou aos discos após uma paragem de dez anos em que se dedicou ao álcool e às drogas, acabando a morar na rua.

Pode dizer-se que Faithfull dedicou a, chamemos-lhe assim, quarta parte da sua vida a trabalhar afincadamente e a recuperar o tempo perdido para substâncias tóxicas: “Não, claro que não imaginava chegar aos 50 anos de carreira”, revela a cantora, cujo meio século na música se comemora exactamente este ano. “Fui anónima, fui uma estrela pop, fui uma dependente e depois fui música – e ainda sou”, continua, enunciando as diferentes fases da sua vida. “Trabalhei muito porque perdi muito tempo com as drogas e com o álcool. E trabalhei porque adoro música. Não sei que mais posso fazer. Por isso continuo a fazer discos." 

E que discos – em particular Broken English. Give My Love To London pode nem vir a fazer parte do cânone da senhora, mas tem pelo menos uma mão cheia de canções (clássicas, clássicas) que fariam belíssima figura no portfólio de qualquer cantor: logo à cabeça, a magnífica balada folk que dá nome ao álbum, seguida por True lies, ambas cantadas no tom rouco e quebrado de quem levou uma vida de excessos.

“Acendi um cigarro, querido”, diz-nos Faithfull. “Não fumava há dez anos. A minha voz está muito melhor desde que deixei de fumar. Mas acho que os defeitos tornam as canções mais reais. Não gosto de canto perfeito; o blues em geral, o Dylan em particular, não têm vozes bonitas. Mas gosto da voz da Aretha Franklin, é talvez a única voz perfeita que aprecio. Eu transformei as minhas imperfeições nas minhas qualidades."

Para estas qualidades contribuem – e de que maneira – os parceiros no crime que Faithfull requisitou para este álbum. Gente da estirpe do grande Steve Earle (um ex-heroinómano, condenado por bigamia, que foi melhor amigo de Townes van Zandt até à morte deste), Nick Cave, Ed Harcourt, Anna Calvi, Rob Ellis e Roger Waters.

Espera, Roger Waters? Não é suposto que o homem dos Pink Floyd odeie toda a gente, viva fechado em casa a remoer as amarguras em que a sua banda se desmembrou e a sentir-se insultado por o mundo não o ter convidado a ser o rei desta porra toda? “Ahaha”, ri-se Marianne, “adoro que as pessoas pensem isso do Roger. Eu sei que ele pode ser assustador quando as pessoas não o conhecem ou ele não está para aí virado, mas é dos meus melhores amigos e, acredita, é um homem muito querido, muito doce." 

Talvez. Mas convém notar que muito provavelmente a noção de querideza e doçura de Faithfull não será a do comum dos mortais. A sua lista de colaboradores em Give My Love To London podia muito bem ser uma de gente procurada pela polícia. Entre heroinómanos e psicopatas, alguns dos maiores acidentes do rock deram uma perninha neste disco. “Estou tão contente com estas escolhas”, diz ela. “Primeiro escrevi as palavras. Depois pensei em quem podia compor. Nunca é uma coisa altamente planeada. As pessoas não conseguem acreditar na quantidade de sorte e de acaso que entram nisto. Pensam que escrevemos com um conceito, que definimos um som, que passamos horas em casa a pensar 'Quem será a pessoa indicada para esta letra?'. Mas depois não é nada assim: fiz um concerto com o Bill Frisell em que o Steve Earle surgiu, falámos e apareceu esta canção [homónima ao disco]."

Continua a explicar como é que o álbum foi sendo composto e que papel as afinidades pessoais desempenharam na sua forma final: “Apesar de haver um som e temas comuns que o atravessam, vejo as canções como separadas entre si. O Deep water, por exemplo: o Nick Cave [que compõe o tema] veio a Paris, fui vê-lo, conversámos, falei-lhe da letra e ele disse que faria a música. Não foi nada planeado. E é um casamento perfeito”, conclui. Pese embora não seja tão bela quanto Love more or less, escrita por Harcourt, ou Falling back, oferecida por Anna Calvi, soa a uma daquelas baladas grandiosas de culpa e arrependimento amoroso em que Cave é imaculado.

“Gosto de colaborar, e tenho-o feito ao longo dos anos, até porque não componho. Algumas destas pessoas conheço muito bem: o Rob [Ellis, ex-baterista de PJ Harvey] e o Nick, damo-nos mesmo muito bem. O Steve Earle. Ele é perfeito para esta canção”, diz, antes de abordar o cadastro destes homens: “Honestamente, acho que a experiência de vida deles ajuda, sim. Mas terem sido junkies não importa nada, hoje em dia. Claro que Late victorian house não podia ter sido escrita sem essa experiência."

Como Deep water, é mais uma balada ao piano, negra, escrita por Cave e Harcourt, em que Faithfull recorda os dias de fome que passou – e passou-os em várias fases, primeiro quando vivia com a mãe e posteriormente quando estava agarrada às drogas e a dormir na rua (“Sleeping in each other other's arms”, como canta, num tom fantasmagórico, por entre violinos que mexem com a espinha. “Não me consigo libertar dessas memórias”, admite, sem que tenhamos perguntado nada. Há momentos em que ela simplesmente fala e fala, como se não o pudesse evitar. “O ter tomado drogas e ter vivido nas ruas já não tem importância. Não tenho vergonha e não tenho orgulho desse período”, diz, e agora a sua voz é séria, ponderada e seca.
 

<_o3a_p>Canções de amor e morte
 

Em última instância, o amor e a presença da morte são os grandes temas de Give My Love To London, um disco surpreendentemente coeso (tendo em conta a disparidade de compositores) e que acerta em cheio em meia-dúzia de canções prenhas de tristeza e aquela espécie de esperança em quem sobreviveu a tudo – mas ainda assim capaz de uma rockalhada cheia de guitarras e harmónicas, como The price of love.

“Não sei se é mais difícil escrever à medida que a idade passa. O grande assunto para mim é o amor e nunca se pára de escrever sobre ele." Mas, perguntamos, na sua idade não devia estar a oferecer gomas às escondidas aos netinhos? “Tenho três netos e passo muito tempo a pensar neles, obrigada. Tu és novo e não percebes isto: eu penso no amor; não em sexo. O amor é importante, o sexo nem por isso”, diz Faithfull, antes de, naquele seu tom brusco de quem ganhou o direito a dizer tudo o que lhe apetece, acrescentar que “a experiência de parir foi horrível”.

The Price of Love, diga-se, é uma versão do tema popularizado pelos Everly Brothers. “Sou uma grande fã deles desde os 14 anos. O Phil [conhecido por Phil Everly, metade do duo completado por Don] morreu e eu queria fazer uma homenagem." A morte entra no trabalho e na vida de Marianne Faithfull “muito conscientemente”. “Perdi dois dos meus melhores amigos na Austrália, recentemente. Quase que tenho vontade de ir para lá."

Mas Faithfull não foi para lá. Foi para um funeral. Antes de voltar à sua carreira: “Porque é que haveria de parar? Se posso continuar a fazer discos, porque não continuar? Nos meus concertos há gente de toda as idades. Eu adoro os meus fãs e eles adoram-me a mim. Não há nenhuma razão para não continuar", conclui já no fim. Antes de nos informar que o chapéu para o funeral tinha uma renda muito bonita. Que quase faz esquecer a morte. Quase.

 

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