A única coisa na vida que não se pode falsificar é...?

Juan José Millás às voltas com o original e a cópia, com a morte que dá sentido à vida, com romances falsos e verdadeiros. Em A Mulher Louca o escritor espanhol quis romper os géneros.

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MIGUEL MANSO

Juan José Millás, enquanto toma um chá sentado no terraço da York House em Lisboa, recorda uma história que o filósofo Wittgenstein contava. É a história de um antropólogo que foi estudar uma tribo em África. Nessa tribo jogava-se um jogo de mesa mas quando ele perguntou quais as regras não lhe souberam explicar. Então, depois de os observar muito tempo, o antropólogo escreveu as regras do jogo.

“Nesse momento apareceram naquela sociedade dois tipos de pessoas: os que sabiam jogar e os que sabiam as regras. Eu sei jogar mas não sei as regras. Então, quer isto dizer, não consigo responder a tudo o que me perguntam”, diz sorrindo o vencedor do Prémio Planeta 2007 e do Prémio Nacional de Narrativa 2008 pelo seu romance mais conhecido O Mundo (ed. Planeta).

Millás veio a Portugal lançar A Mulher Louca. Retorna aqui ao tema da eutanásia, assunto que já abordara jornalisticamente, em 2010, quando publicou no jornal El País, a reportagem Son 15 minutos. Dejas de respirar. Y fuera. Onde contava a história de Carlos Santos, um homem de 66 anos que sofria de um tumor incurável e que decidiu morrer. O jornalista passou com ele o dia anterior ao da sua morte e na reportagem relatava, através do testemunho dos voluntários da Associação DMD – Direito a Morrer Dignamente -, o que se passou no dia seguinte, quando Carlos tomou o cocktail de medicamentos e morreu a dormir num quarto de hotel. A pergunta difícil a que Millás não podia responder era relativa a este tema, o da eutanásia. Queríamos saber o que é que a ficção lhe deu que a escrita jornalística não lhe tinha já dado. Mas já lá vamos.

Excluímos a morte da vida

A Mulher Louca é um romance sobre a loucura e sobre a morte. É também, simultaneamente, um romance e o seu making-of: ao mesmo tempo que aqui se conta uma história, conta-se como se foi chegando a ela. O ponto de partida do acontece quando da Associação DMD – Direito a Morrer Dignamente chamam Millás (que se inclui na obra também como personagem, como modo de investigar essa instância que é o narrador) para uma reportagem sobre eutanásia com uma mulher, Emérita, que o quer conhecer e deixar-lhe o seu testemunho. Ele recusa, porque já fez uma reportagem sobre o assunto e não se quer especializar nisso, mas vai conhecer a mulher num acto de solidariedade.

Por coincidência, a casa onde essa mulher vive é a casa onde o escritor viveu em jovem. “Aí começam a passar-se coisas... Millás vai lá ver a doente mas encontra-se com Júlia, a mulher louca que ali vive também. É uma rapariga que tem uma psicose, um delírio paranoico com as palavras. Tem alucinações verbais e as palavras aparecem-lhe, corporizadas e perseguem-na”, explica o escritor.

Ora bem, o que interessava da eutanásia ao ficcionista Millás – e assim voltamos à questão do início - é aquilo que ela metaforiza da morte. “Vivemos em sociedades em que a morte desapareceu do panorama. Enterramos os mortos na clandestinidade, morre-se fora de casa, velamo-los em tanatórios, excluímos a morte da vida. Isto é um disparate de uma dimensão colossal porque a vida só tem sentido porque existe a morte”, defende.

E é isso que nos mostra com Emérita, a mulher acamada do seu romance que se quer suicidar. “A vida de Emérita ganha sentido quando ela sabe que vai morrer. De repente a vida faz sentido porque incorporou a morte.” Millás quis falar de duas coisas que excluímos das nossas vidas: a morte e a loucura.

“A loucura dá-nos medo – os loucos são o nosso bode expiatório. Além de os afastarmos da sociedade, catalogamo-los como loucos colocando-os no território do não-sentido. Dizemos que os loucos não fazem sentido porque estão loucos apesar de dizerem coisas tão certas como as que diz Júlia”, acrescenta.

No romance, a personagem Millás encontra-se num momento de bloqueio criativo e começa a ir a casa de Emérita para ver Júlia, a louca. Dá por si perante um dilema: por um lado tem ali a hipótese de uma grande reportagem sobre eutanásia e, por outro, de um grande romance sobre a loucura. Mas à medida que o tempo passa dá-se conta de que aquilo que parecia uma reportagem é um romance e o que parecia romance é uma reportagem.

 “As fronteiras neste livro estão a romper-se continuamente, tal como se rompem na nossa vida sem darmos conta”, explica. Este livro rompe as fronteiras do romance, da reportagem, da autobiografia, os três materiais de que é composto. E rompe também as fronteiras entre o que é realidade e o que é ficção. “Estas são fronteiras muito frágeis e artificiais. Aquilo a que chamamos realidade não é mais do que uma parte muito pequena da realidade. Os sonhos e as fantasias também fazem parte da realidade mas não lhes damos esse status. E o que é curioso é que as fantasias e os sonhos, aquilo que acreditamos não ser real, é o que determina a realidade. Isto porque tudo o que nos passa pela cabeça, mais cedo ou mais tarde, acaba por se tornar realidade.”

E dá um exemplo: para que esta garrafa de água exista, teve primeiro de ser um fantasma na cabeça de alguém. Se isso não tivesse acontecido, não existia. “Essa fronteira que pomos entre realidade e a ficção é uma fronteira muito frágil: basta um sopro para a derrubar”.

A determinada altura do livro fala-se até da importância para a humanidade de um suicídio que só aconteceu na literatura: o de Madame Bovary. “Os suicídios falsos tiveram mais influência ao longo da história do que os verdadeiros. Claro, o irreal é mais importante do que o real. Porque vivemos no irreal, porque estamos todo o dia a conjecturar fantasias de como seremos, do que vamos fazer, de como será o amanhã, do que estudaremos, do que seremos. Todas essas fantasias, tudo isso que é irreal é isso que molda a realidade. Até se costuma dizer: ‘Toma cuidado com o que desejas na juventude porque o terás na idade madura.’”

Normal e anormal

Entre os capítulos mais conseguidos do livro estão aqueles que têm por título “Do ‘Diário da Velhice’ de Millás”. O diário serve como um fio condutor do resto? “Em parte sim porque ao mesmo tempo que em A Mulher Louca se conta a história do romance, conta-se também o que aconteceu quando ele foi feito e a velhice é uma das coisas que acontece a Millás quando está a escrever o livro.”

“A velhice é um assunto muito subtil. Tu não te levantas um dia e és velho. Não notas o envelhecimento de um dia para o outro, a velhice cresce como crescem as ervas, não as vemos crescer mas de repente, um dia, estão aí. Na medida em que o romance era um making-of do romance, aquilo que me ocorria enquanto eu o escrevia, tive de o incorporar”, explica.

Houve um crítico em Espanha que disse que este era um romance “raro” , no sentido de que saía da norma. Ao lê-lo Juan José Millás achou estranho que para aquele crítico existissem romances normais e romances raros. Já que não há nada de mais anormal do que um romance normal, porque a primeira obrigação do romance é a de ser raro, ser diferente, sair da norma. Mas depois de pensar nisto deu-se conta de que se calhar o crítico tinha razão: há romances normais que se adaptam ao gosto geral.

“Quando alguém escreve tem de ter a sensação de que está a fazer algo de novo ainda que seja mentira”, diz. Porque senão não podia escrever a não ser que fosse um autor de best-sellers, que repete fórmulas e clichés. “Esses best-sellers são os romances mais normais do mundo, os que estão todo o tempo a dizer ao leitor: ‘Você tem razão’. Eu acredito que os romances bons são aqueles que tiram a razão ao leitor. Os que o fazem questionar a sua ideia da realidade, a sua ideia da ficção, a sua ideia do tempo. Os romances em que depois da sua leitura se sai de lá diferente do que quando se entrou. Este meu romance, de certo modo, pretende pôr a descoberto esses romances normais por isso nele se fala tanto de se querer fazer um romance falso porque um romance falso seria uma paródia de um romance verdadeiro.”

Juan José Millás lembra ainda que quando estava a trabalhar neste romance leu uma notícia onde se dizia que numa mesma fábrica têxtil, no sudoeste asiático, se fabricavam as calças de ganga de marca e as de contrafação. “Os jeans verdadeiros e os falsos eram fabricados na mesma fábrica, com tecido idêntico e a única diferença é que no final a uns colavam a etiqueta verdadeira e a outros a falsa. Num livro não se pode colocar ‘isto é um romance falso’. Como é que distingues um romance falso de um verdadeiro?”, brinca. Um romance é a única coisa na vida que não se pode falsificar.

 

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