Syd Mead, o futurista visual que é mais do que Blade Runner, mas que não se livra dele

Designer, ilustrador e concept artist, aos 81 anos é uma das estrelas do festival de animação e efeitos especiais Trojan Horse was a Unicorn, que decorre até domingo em Tróia. Tron, Elysium, Aliens e os interiores do Concorde também fazem parte do currículo deste futurista visual norte-americano.

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Um dos exemplos do trabalho Syd Mead para "Blade Runner" Corbis
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Syd Mead e o perito em efeitos especiais Douglas Trumbull em 2007 quando do lançamento de "Blade Runner: the Final Cut" Albert Gea/REUTERS
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"Sulaco", a nave de "Aliens", de James Cameron DR
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Syd Mead concebeu a imagem de veículos como as motos de "Tron" DR
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Syd Mead é um apaixonado por transportes, me particular pelos carros DR
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Desenhos de Mead para "Elysium", de Neill Blomkamp DR

Faltam só cinco anos para Los Angeles viver noites de chuva constante, para ser uma paisagem saturada de arranha-céus cobertos de publicidade, onde os carros voam e os andróides fugidos das colónias extra-terrestres se tentam misturar connosco. Falta pouco para estarmos em 2019 e nos camuflarmos nos cenários e veículos desenhados por Syd Mead para Blade Runner – Perigo Iminente. Mas o “futurista visual” Syd Mead, sentado no seu quarto de hotel em Tróia, não acha nada disto justo.

É que Blade Runner, realizado por Ridley Scott, é indestronável como primeira linha do currículo de Syd Mead, concept artist norte-americano que desenhou para hotéis e videojogos, que fez veículos em Tron e na Ford, que criou naves em Star Trek ou cidades em Elysium. E Mead, aos 81 anos, defende que 60 anos de carreira não se resumem ao seu contributo imagético para um dos melhores filmes de ficção científica de sempre. “Na verdade, não estava assim tão fascinado… era um trabalho.”

Era um trabalho que se seguia ao desenho da entidade alienígena V’Ger para Star Trek (1979), realizado por Robert Wise, e a que se seguiriam Tron (1982), desenhando todos os veículos no mundo electrónico de néon azul que se tornou um culto, 2010 (1984), um dos seus favoritos e onde conheceu Arthur C. Clarke, e Aliens: O Reencontro Final (1986), convidado por James Cameron para criar a importante nave Sulaco. De todos eles Mead teve uma melhor percepção do que “se estava a passar” do que quando trabalhou em Blade Runner com Scott e com o director de arte Lawrence G. Paull.

Coube-lhe “desenhar os veículos, pintá-los nos seus ambientes para se enquadrarem na história”, criar um universo (d)escrito por Philip K. Dick. Lendo o guião, pegou nas Torres Gémeas e nas proporções das ruas lineares de Nova Iorque e elevou tudo no ar, desenhou os carros voadores Spinner, ouviu Scott e o seu fascínio por Moebius, por Nighthawks, de Edward Hopper, e pelos comics franceses Métal Hurlant. Esse seu mundo desenhado depois ganharia corpo, mas “nunca soube muito bem do que se tratava” enquanto o filme era feito, confessa Syd Mead na véspera da sua conferência na 2.ª edição do Trojan Horse was a Unicorn, festival português que reúne até domingo em Tróia mais de 450 animadores, artistas e técnicos de efeitos visuais e especiais de dezenas de nacionalidades.

Syd Mead é uma das estrelas do evento fundado em 2013 pela agência de produção web portuguesa Yellow Mammoth para potenciar o desenvolvimento destas áreas no país, e juntam-se-lhe o oscarizado Andrew Jones (Avatar) e mestres dos efeitos especiais como Kyle McCulloch (Gravidade) ou Jan Fiedler (Guerra dos Tronos). O seu embaixador é Scott Ross, parceiro de George Lucas e James Cameron e fundador da Digital Domain, um dos maiores estúdios de produção digital do planeta que entretanto foi parar a outras mãos no meio da crise no sector.

Um futuro solar
Do 12.º andar do hotel, vê-se o Sado e o mar, e o vento sopra forte, alternando as nuvens e o sol por trás dos cabelos brancos de Syd Mead, que foi o primeiro a falar de Blade Runner na conversa com o PÚBLICO. É porque o filme dos arranha-céus asfixiantes foi de facto o princípio de muita coisa para o rapazinho do Minnesota que, depois de três anos no Exército nos anos 1950, foi estudar para a hoje chamada Art Center College of Design de Pasadena. Depois de anos a trabalhar como designer industrial para várias grandes empresas, foi ao telefone, quando lhe perguntavam como devia ser creditado o seu trabalho no final do filme de Ridley Scott, que se descreveu pela primeira vez com um termo criado no momento: “futurista visual”. “Não sou membro de nenhum sindicato ou guilda e não podia ser director de arte, uma categoria que ganha Óscares, e por isso inventei visual futurist porque sou visual e porque a maior parte das coisas que faço se destina a inventar o aspecto que o futuro podia ter em vários campos – transportes, produtos, moda…”

É assim, e como concept artist, que é agora descrito. Não parou nunca de trabalhar nas várias áreas da sua actividade, da indústria dos bens de consumo electrónicos até ao cinema, onde no ano passado assinou interiores e terrenos de Elysium, a segunda longa de Neill Blomkamp, o realizador sul-africano fã de Mead que o impressionou na sua aclamada estreia Distrito 9 (2009). São filmes que tratam o futuro ou um passado alternativo, mas que só podem dizer-nos algo sobre o presente.

No seu primeiro livro de contos, Turno da Noite (1978), o mestre e best-seller do thriller Stephen King defende que os filmes de ficção científica e fantasia ao longo das décadas são “padronizados e o que a sua fórmula expressa mais claramente é a paranóia de toda uma geração”. Syd Mead e o cinema cruzam-se inexoravelmente com a ficção científica e fantasias futuristas, distopias q.b., mas ele nem é um fanboy destas categorias da ficção. Leu Asimov e outros na adolescência, mas “há tanta ficção científica que é muito má, com péssima escrita…”, suspira, dizendo não saber por que é que o pai, um pastor baptista, lhe lia livros de Buck Rogers e Flash Gordon quando era criança.

Mas quando o sci-fi é bom, “é realidade antes do tempo”. As interpretações de muitas narrativas futuristas oscilam entre a bola de cristal que nos dá vislumbres do que pode ser o nosso futuro, mais ou menos temível, ou como discursos sobre a vida contemporânea – os filmes sobre insectos mutantes dos anos 1950 como alegorias dos receios perante os testes nucleares no Pacífico, os alienígenas que se lhes seguiram sobre a ameaça comunista aos EUA, os disaster movies dos anos 1990 em diante perante as alterações climáticas. “Distrito 9 é absolutamente uma metáfora do apartheid; Elysium é sobre a imigração ilegal”, completa Syd Mead.

Mas se o futurista visual acredita que “os temas têm de se encaixar nas fascinações ou sensibilidades das suas eras, porque de outra forma são como um documentário que não vai muito longe”, é também um pragmático no que toca à Hollywood que sempre o tratou bem – mesmo quando os filmes que não previa que se tornassem de culto, como Tron ou o inevitável Blade Runner, foram quase flops na bilheteira. “Os filmes são feitos para fazer dinheiro, por isso a mística do filme tem de apelar primeiro aos financiadores.”

Mead, contratado para “inventar por que é que algo deve ter o aspecto que deve ter”, é um optimista em relação ao futuro que trabalha em imagem. “Estamos em 2014 e, no geral, o mundo está muito mais pacífico do que alguma vez foi. Putin está a tentar comprar a Ucrânia de volta, mas não há-de ir muito longe” e “há sempre pontos de tensão”, “pequenas bolsas” a que chama “anomalias culturais ou sociais”, como as tensões no Médio Oriente. Mas é a tecnologia e a ciência que lhe permitem ter uma visão solar do futuro. “Sou um optimista, há mais pessoas a trabalhar em soluções do que alguma vez na história humana, como na medicina, ou a tentar corrigir alguns dos erros que a tecnologia causou.”

“Barroco supersónico”
Lá fora, os artistas visuais de várias idades e figurinos encaminham-se para mais uma palestra com os responsáveis pelo delinear de personagens de Alice, de Tim Burton, ou pelos ambientes de Guardiões da Galáxia ou do videojogo Grand Theft Auto. Há suicide girls, belezas pin-up actualizadas para a cibercultura alternativa, disponíveis para posar para os artistas, e a calmaria de uma Tróia num fim de Verão tímido. Syd Mead sabe que está aqui como um guru, como uma influência para muitos artistas que querem conhecer An Artist’s Path, a sua apresentação de sexta-feira à noite. Reconhece que ali estão alguns dos “melhores do mundo”, e que influenciou gerações. É desprendido quanto ao reconhecimento do seu traço ou ideário no que veio a seguir: “Se as regras são semelhantes, as soluções serão semelhantes”, mas aborda cada projecto sob o lema “o excesso de confiança mata”.

Não “mudaria nada” nos seus trabalhos passados, seja no desenho das máquinas de máscaras de Missão: Impossível 3 para J.J. Abrams, ou dos produtos que ainda não existiam mas cujo aspecto a Philips lhe pedia para inventar na década de 1970. Desenhou interiores do Concorde para a Air France, trabalhou com a Volvo e fez ilustração para a produtora de aço U.S. Steel como para os hotéis Intercontinental. É fascinado pelos limites e possibilidades dos materiais, mas sobretudo pelos transportes e, em particular, pelos carros. Eles voam em Blade Runner, rodam sobre luz em Tron, circulam no jogo da consola Sega Saturn, brilham entre os desenhos originais que tem expostos na mostra itinerante Syd Mead – Progressions, que pode chegar dos EUA à Europa em breve, e terão certamente um papel importante na autobiografia em que está a trabalhar.

Em seis décadas de trabalho, chegou a algumas conclusões. Objectos vs. adereços: “É mais fácil fazer as coisas do mundo real, porque trabalhamos para uma empresa que faz e publicita algo, e quando chega a altura de comprar, as pessoas já sabem o que é. No cinema, o que desenhamos tem de ser instantaneamente reconhecível, inventivo, novo e que clique imediatamente para que toda a gente saiba o que é enquanto a história decorre”. Ideias vs. técnica: “Se tivermos um computador de um milhão de dólares e uma má ideia, no fim temos uma má ideia de um milhão de dólares. A ideia é mais importante do que a ferramenta, porque as ferramentas mudaram desde que se fizeram as primeiras imagens na parede de uma caverna. É para isso que me contratam, para pensar. É um bom negócio”.

Portanto, apesar do interesse na tecnologia e na magia de como as coisas funcionam ou podem vir a funcionar, Mead diz que não precisa de efeitos especiais, "só de uma caneta e de papel, e talvez de um pincel e mostrar isso ao realizador. Se ele gostar, fazem-no”. O seu estilo é o auto-intitulado “barroco supersónico” e faz-se de “uma forma muito limpa, polida e normalmente muito geométrica”, a que impõe um padrão barroco. E, rufam os tambores na mente de Mead, “o contraste é espantoso”. “Lembra-nos algo que nunca vimos”, descreveu em tempos Richard Taylor, o supervisor de efeitos especiais de Tron.

Em Tróia, circulam criativos com a imagem do cavalo de Tróia-unicórnio ao pescoço, um festival sem fins lucrativos de muitas línguas e alguns apoios comunitários, viram-se imagens inéditas da próxima temporada de Guerra dos Tronos (que em Portugal passa no canal SyFy) e aprende-se o futuro do sector. O artista comercial Syd Mead nada mudaria no que imaginou ao longo da vida, porque o fez “à prova de tempo". "Se fizermos uma coisa que é inventiva para o futuro, quando o tempo real apanha esse futuro, ainda tem bom aspecto”, diz.

E, no fim, o que inspira Syd Mead, cuja carreira frisa ser sempre mais do que os “fascinantes” filmes? “As limitações do trabalho. Num filme, o guião é a Bíblia e o realizador é deus. Às vezes, é muito difícil trabalhar alguns dos deuses – talvez como o deus verdadeiro, não sei”, ri.   

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