O milagre do rock’n’roll no Fusing segundo Tiger Man

Noite derradeira do 2.º Fusing, na Figueira da Foz, juntou Legendary Tiger Man e Dead Combo para uma versão de Teenage Kicks. Entre vários concertos arrebatados, foi do homem tigre o concerto que, num milagre, anulou barreiras entre público e músicos.

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Paulo Furtado, aliás Legendary Tiger Man, em concerto em Março deste ano enric vives-rubio

Ainda o concerto dos Paus vai no adro e Hélio Morais, baterista siamês, dedica Mudo e Surdo àquele que “fez como Moisés: separou as águas e deixou entrar pessoal aqui para a frente”. Explique-se: o Moisés de que Hélio fala é Legendary Tiger Man e o milagre da separação das águas foi antes o da separação das barreiras que separavam o público do palco. Já na quinta-feira, a rapper Capicua comentara a pouco habitual e indesejável distância cavada pelo fosso para os fotógrafos (a melhorar em futuras edições), abrindo verdadeiramente um buraco na relação com a assistência e não permitindo, em parte, que as actuações aquecessem ainda mais.

Só pelo espírito rock’n’roll e pela assertividade de Paulo Furtado passou então a ideia de um pedido/ordem simples para que os seguranças abrissem a barreira e deixassem o seu público, “gente de bem”, afiançaria o músico, acercar-se do palco. Tratava-se de um concerto de rock’n’roll, pois bem, e o rock’n’roll faz-se de proximidade física, de contacto, de suor partilhado, sem distâncias de segurança. O pequeno episódio mostrava aquilo que já não é surpresa: Tiger Man é um animal de palco pela sua energia contagiante e selvática, naturalmente, mas também pela sua capacidade prática de transformar situações adversas e impregnar desse espírito cada momento e dimensão da sua actuação. Daí que o final da sua fulgurante passagem pelo Fusing se faça gritando repetidamente “rock’n’roll” na direcção do público e pedindo resposta a condizer. Na última e mais visitada noite do festival da Figueira da Foz, instalava-se finalmente a euforia.

Essa euforia justificar-se-ia em boa parte também pela forma inteligente como Tiger Man tem sabido partir da crueza blues-punk de temas como Naked Blues ou Big Black Boat – trocando o Mississípi pelo Mondego ali ao lado –, que ouvimos com a habitual eficácia primitiva na Figueira da Foz, sem permitir que essas águas possam estagnar. Fê-lo em Femina, claro, na busca de diálogos com outras vozes, mas sobretudo agora em True, quando faz dos blues matéria para a elegância de Do Come Home ou para canções febris e arfantes como Wild Beast. Ao vivo, Furtado não finge que se esqueceu do estúdio, e promove agora um banquete rock’n’roll repartido com a bateria de Paulo Segadães e o saxofone de João Cabrita. Mantendo intacta a aspereza da música, dá-lhe mais corpo, músculo e nervo, com o saxofone a facilitar algumas aproximações à sonoridade dos Rocket from the Crypt, particularmente em temas que não param de crescer como Storm Over Paradise ou Dance Craze.

O festim terminaria com 21st Century Rock ‘n’Roll, não sem antes Furtado chamar ao palco outros dos protagonistas da noite, os Dead Combo, para o clássico punk Teenage Kicks, dos Undertones, versão para três guitarras, guitarra e sax, lembrando que este Tiger Man é progressivamente menos solitário sem perder as suas qualidades assanhadas de animal ferido.

Relicários e Áfricas

À frente do seu emblemático cenário de relicário mexicano, os Dead Combo ajudaram a esta estranha constatação do insólito de ver o palco principal do Fusing ocupado por grupos aos quais dificilmente se imaginaria, há meia dúzia de anos, poderem ser atracções principais num festival: duas bandas instrumentais (maioritariamente instrumental, no caso dos Paus) e uma one-man band (hoje ampliada). É por isso com uma satisfação espantada que se vê o Fusing a reconhecer os cultos alargados em torno de cada um e se assiste a uns Dead Combo que são desde logo saudados como heróis de uma certa identidade nacional porosa em que todos se querem reconhecer e ser personagens.

Começando pelo tom western/fado que se tornaria a sua primeira imagem de marca, seguem depois por blues ao jeito dos White Stripes ou por um Pacheco que magnificamente se transformou (com a substituição da melódica pelo piano-anão tocado por Pedro Gonçalves) num tema enorme na sua soturnidade blues-jazz. E há mornas, claro, blues retorcidos e arrastados à boa maneira de Tom Waits, uma versão (Temptation) do próprio Waits, rock puro e duro em Cacto, a sombra constante de Carlos Paredes e todos estes universos aumentados pela bateria marcada de Alexandre Frazão. Momentos houve em que a banda pareceu dessincronizada com o baterista, mas coisa pouca para o tanto que chega do palco, a criação de um mundo irrepetível em qualquer outro idioma musical. E é essa dimensão específica que parece caber especialmente bem nos intentos do Fusing, de privilegiar a originalidade musical portuguesa.

Ao mesmo tempo que se mostrava na Garagem das Artes uma recolha dos resultados de passeios de instagrammers pelas ruas da Figueira da Foz – e por onde durante a tarde X-Acto fizera uma curiosa e instrutiva apresentação prática e teórica do scratch, como nasceu e que aplicações tem no universo do hip-hop –, Fachada abria o palco principal agora que deixou cair o B do nome. Sozinho com os seus teclados e samplers, deixou clara a sua proposta de filiação na música de José Afonso. Não é só pelo facto de anunciar “antes do Godinho havia outro com outro nome”, e em seguida mandar uma dedicatória enquanto espreita o céu e arrancar com Já o Tempo se Habitua. Fachada prossegue nesta sua via de encher as suas canções de África, a partir das pistas de Zeca Afonso (e até de Paul Simon), mas com a distinta colagem de uma electrónica impolida ao cancioneiro popular português. Há marchinhas subsarianas e afro-chulas, e uma bonita balada quase soul lusa (Não Pratico Habilidades) de um músico absolutamente singular na música desta terra. E que vinga por isso mesmo.

Free rock e skates

Noutros palcos, Sequin confirmou a sua queda para a melodia num conjunto de canções queridinhas mergulhadas em programações que nunca lhe abafam esse jeito curioso de tratar a pop, enquanto o RED Trio, no mesmo Cooking Lounge (esqueçamos o nome) onde mais tarde haveria mais uma batalha gastronómica Chef vs. Chef, trataria de combater calor e vento a meio da tarde na versão eléctrica da sua música improvisada à sombra do jazz. E assim é porque o contrabaixo e o piano são trocados pelo baixo e o piano eléctricos, numa magnífica exploração de ambientes em que a secção rítmica conduzia crescendos e diminuendos intensos, enquanto o piano de Rodrigo Pinheiro pingava notas sobre os outros dois. A pensar no Fusing, foi uma actuação de fundo rock. Free, mas rock.

Valendo-se das conquistas de Tiger Man, os Paus encerrariam os concertos do Fusing (o outro palco ficava entregue à prática DJ) com mais uma dose proteica de rock pouco alinhado, duas baterias açoitadas com inclemência, mais baixo e guitarra a chisparem notas por ali acima. Aquilo que já não é novidade nos Paus: uma viciante e agitadora música torrencial, uma energia bruta deixada à solta e frases cantadas como slogans para entoar em coro. E enquanto atacavam Ponta e Mola, depois de comparar este Verão – que “não tem sido Verão nenhum” – ao Governo português, pelo recinto rolavam skates abalançados pela música. O Fusing, à falta de melhor definição, é isto. Quando parece que não tem a ver, afinal até tem.

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