Capicua apresentou Vayorken à Figueira da Foz

A rapper Capicua foi a estrela da primeira noite do Fusing, na 2.ª edição do festival reclamado para a zona centro. No meio de comida, arte urbana e desporto, aparições inspiradas ainda para Sensible Soccers, White Haus e You Can’t Win, Charlie Brown.

Fotogaleria
Capicua no Fusing Vasco Mendes/Fusing
Fotogaleria
Noiserv no Fusing Vasco Mendes/Fusing
Fotogaleria
Fusing Vasco Mendes/Fusing

Capicua está em palco e cabem-lhe na mão as centenas de pessoas que se juntam frente ao palco principal do Fusing. Já lá vai mais de metade de um concerto que contraria a letra do tema seguinte, A Última, onde numa visitação ao seu percurso de rapper acusa que “até chega a ser boicote / em festivais não é suposto / só toca banda de rock”. E mais: “nesta lua-de-mel da música portuguesa (…) excluem os MCs”. Capicua é, na verdade, a autora da actuação mais bem-sucedida da noite inaugural da 2.ª edição do Fusing, festival na Figueira da Foz que junta música, gastronomia, arte urbana e desporto num só pacote.

Mas esse carácter de excepção, do rock a tornar-se permeável ao hip-hop nestes encontros para consumo concentrado de música a pensar nas massas, e até do lugar de destaque de artistas portugueses em palcos de festivais, não se aplicam num lugar como o Fusing.

Em parte, porque as massas – num sentido duplo – não mandam assim tanto aqui. No Fusing – apesar do nome – o cartaz é esmagadoramente composto por músicos portugueses e não é pensado para aquele efeito fácil, desgarrado e tipicamente de vistas curtas de contratar duas ou três velhas glórias do pop/rock inglês e depois enxertar bandas portuguesas para fazer número. É por isso que ouvimos David Santos (Noiserv e You Can’t Win, Charlie Brown) agradecer em palco à organização, por saber que este modelo até pode complicar as contas das finanças e convocar menos gente. Mas o que se percebe facilmente é que a identidade do festival assenta na diversidade de áreas temáticas em convívio junto ao Forte de Santa Catarina e à praia onde o Mondego esbarra no Atlântico, assim como numa programação musical preocupada sobretudo com a consistência.

O Fusing não é assim, por enquanto, um festival de enchentes. Mas é um festival ainda à procura do seu espaço, em que Noiserv e o seu quarto de brinquedos transposto para canções de palco disputa atenção com workshops de sushi e gin mesmo ali ao lado, e com uma apresentação dos videoclipes de Vasco Mendes uns metros mais à frente. A música, embora na primeira linha, não consome toda a atenção. Em Noiserv, aliás, voltamos a encontrar esse comovente regresso à infância que David Santos parece tentar consumar em cada concerto, nuns arremessos de folk dolente cuja beleza está no seu estado precário e íntimo. Por ali passara também, horas antes, um Ghettoven desalojado de um pequeno palco parcialmente levado pela ventania.

Por ali passaria também, pouco depois, a promissora linha descrita pelos First Breath After Coma, banda de letras raspadas até ao osso, cantadas em versos soltos etéreos, entaladas entre longos trechos recolhidos entre a Reiquejavique dos Sigur Rós e o bairro de Brooklyn dos The Antlers, numa espécie de pós-rock (o nome da banda é pilhado aos Explosions in the Sky) pouco arrebatado e com ambições de chegar a canção. Há que não os perder de vista.

Coração e cabeça

Depois de uma banda de parcas palavras, a vez era de Capicua e de uma implicação em histórias e narrativas que não se ficam pela mera sugestão. Já não é novidade que a rapper é hoje uma das mais inventivas letristas desta terra. Mas é uma viagem que se repete as vezes que forem precisas, acompanhando-a à sua infância quando cresceu “a ouvir Zé Mário [Branco]” (e que vai bater em cheio na sua primeira rima à porta do infantário), numa travessia do Tejo num cacilheiro que abastece as profissões de rés-do-chão da capital e nota que “até Cristo virou costas ao Sul”, na subjugação pelo medo ou no feminismo esclarecido de Maria Capaz. Palavras, muitas palavras, desde a fabricada Vayorken (deturpação de Nova Iorque num regresso casto aos tempos de garota) à boleia de José Afonso para lembrar que as pedras da calçada deste Portugal já secaram as lágrimas de tanto chorar e começam a ser atiradas.

Enquanto Capicua não falhava mais uma notável prova de que o seu hip-hop se faz de coração e de cabeça, arrancavam também os Sensible Soccers no Palco Experience (secundário), montando aquela sua original teia de transe, graças a um pulsante baixo que comanda cada tema num torvelinho impassível, por cima de ritmos minimais, mais guitarras e teclados a chiar e a esgarçar por cima de tudo. Não é só nuns Animal Collective se nascidos em Düsseldorf que se pensa, mas numa imaginação musical que é só deles, uma qualquer escalada de levitação como que se os víssemos levantar do chão e isso fosse, na verdade, um fenómeno tão admirável quanto entendível.

Antes que a maquinaria voltasse ao Experience, os You Can’t Win, Charlie Brown fariam mais uma pequena festa de folk permeável ao psicadelismo. Assentando no seu reportório mais físico, trouxeram os sábios ensinamentos de Beach Boys e Beatles aplicados por uma geração que os ouviu também filtrados por Fleet Boxes e Bon Iver. Os Charlie Brown existem no meio disso tudo, numa bela tentativa continuada de derramar sol sobre cada canção. Depois desse cenário de tarde californiana trazida para a Figueira, João Vieira e a sua excelente ressurreição enquanto White Haus tratou de levar os resistentes de uma noite de gelar os ossos até caves e clubes subterrâneos de uma Nova Iorque – Vayorken, se preferirem – sem ponta de sol, pegajosa de tanto suor, numa sumptuosa sonoridade saturada de funk via ESG, Arthur Russell e LCD Soundsystem, mas com amizade pedida a David Bowie e Lou Reed. A espaços, lá emergia no músico (acompanhado de uma eficaz banda crua) um Mick Jagger. Ou seja, um português que parecia quer ser um inglês a querer ser norte-americano.

Sexta e sábado, há mais Fusing. Em Portugal, que é um festival de festivais, começa a desenhar-se qualquer coisa por aqui. Resta perceber se com capacidade de se impor a nível nacional e ultrapassar a escala regional.

Sugerir correcção
Comentar