Esquecer a arquitectura

Um texto crucial da cultura arquitectónica contemporânea, na prosa poética de Aldo Rossi.

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Aldo Rossi e a sua visão muito peculiar (e muito inspiradora) da arquitectura: “Um modo para [a humanidade] exprimir a sua fundamental procura da felicidade”

Este é um texto difícil de classificar, quer em termos do género, quer em termos do tema. É narrativa biográfica, é ensaio, é poesia, é um livro disciplinar, é sobre arquitectura e os temas recorrentes das casas, dos cemitérios e das cidades, mas também sobre a vida, a morte, a felicidade e o modo como tudo o que nos rodeia penetra em nós no momento da experiência do mundo. A arquitectura está, como afirma Aldo Rossi (1931-1997), entre a infância e a morte, o espectáculo e o trabalho — e é sobre este espaço e sobre as coisas que acontecem à sua volta que o arquitecto quer falar.

Talvez esta Autobiografia Científica seja o texto mais importante na cultura arquitectónica, o que lhe advém do modo como descreve de um modo singularmente belo, intenso e poético o assunto da arquitectura e as diferentes modalidades de entender o fazer do arquitecto. Um texto de uma erudição, cultura e sensibilidade pouco comuns, que alia referências arquitectónicas específicas à poesia de Turner, à música de Schoenberg, à poesia de Hölderlin, Baudelaire e George Trakl, à filosofia de Wittgenstein e Walter Benjamin; esta acumulação de referências, lugares e intensidades constitui a riqueza e a dificuldade de Autobiografia Científica. A que se alia o modo muito preciso, subtil e poético da escrita de Rossi, a que a tradução portuguesa não consegue fazer justiça. Não que Rossi tente poetar a arquitectura, mas aquilo que ambiciona trazer para o seu texto — a sua ciência — só é possível fixar através das subtilezas e do rigor característicos de uma espécie de prosa poética.

A ideia central desta Autobiografia não é fazer aproximações à história individual e acidental do arquitecto como forma de revelar o sentido e os significados das suas construções, mas descrever a genealogia de um certo modo de praticar a arquitectura. Pode dizer-se que, fundamentalmente, estas notas, para usar as palavras do próprio arquitecto, são a apresentação de um modo de descrever. E a descrição é um dos conceitos fundamentais do modo como Rossi fixa o desenvolvimento da arquitectura: “Adolf Loos tinha feito esta grande descoberta na arquitectura: identificar-se com a coisa através da observação e da descrição; sem alterações, cedências ou, por fim, sem paixão criativa nem um sentimento regelado pelo tempo” (pp. 75-76). A descrição é essencial não só como modalidade narrativa, mas como metodologia arquitectónica, isto é, é a descrição dos lugares, das coisas, da vida, que permite que a arquitectura se desenvolva.

Não se trata de um texto técnico sobre arquitectura, mas é um texto sobre a relação das formas materiais com a vida humana, um texto sobre a potência humana de gerar formas significativas e actuantes em diferentes regiões do tempo. Por isso também é uma viagem pelos lugares de formação de Rossi e pela maneira como aprendeu a saber o que esperar da arquitectura, da vida, da linguagem. Lugares fundamentais, porque a arquitectura é para Rossi uma coisa que se reencontra e não que se inventa: “A invenção gratuita é recusada, forma e função estão agora identificadas no objecto; o objecto, faça parte do campo ou da cidade, é uma relação de coisas; não existe uma pureza do desenho que não seja a recomposição de tudo isto” (p. 45). Não que a arquitectura não gere novos significados, mas a gramáticas das suas invenções relaciona-se com a capacidade de relacionar tempos, matérias, formas, intensidades. Em suma, arquitectura significa aqui um elemento primordial de relação com a vida, porque para Rossi ela é “como que o elemento primário no qual se insere a vida” (p. 46). 

É sobre esta vida que a arquitectura revela e possibilita que Rossi quer falar. Um entendimento que fixa o gesto do arquitecto não na expressão de ideias ou enquanto protagonista de desejos artísticos, mas enquanto procura da felicidade: “A arquitectura era um dos modos para sobreviver que a humanidade havia procurado; era um modo para exprimir a sua fundamental procura da felicidade” (p. 23). E a felicidade possível, na nossa vida terrena, é um lugar e um acontecimento indeterminado e imprevisível; por isso, a arquitectura tem de ser indeterminada e imprevisível como a própria vida que quer conter. Este é o contexto a partir do qual Rossi tece duras críticas ao funcionalismo: as formas não servem uma função, mas possibilitam um acontecimento ou, como diz, “favorecem o acontecimento”. É de resto na pintura de Hopper que Rossi encontra os modelos dos lugares que ambiciona tornar reais, ou seja, lugares sem tempo, sem função, lugares onde as coisas nunca são consumidas, mas são sempre elas próprias. Que a arquitectura seja um lugar de possibilidade implica a sua ligação a uma expectativa fundamental, isto é, a expectativa das coisas que estão para ser ditas. E isto resgata a arquitectura da sua condição de discurso organizado sobre o mundo e define-a como lugar antes do dito, antes do acontecimento, antes dos factos, isto é, um lugar de possibilidades e não de afirmações. É neste contexto que Rossi, convocando os versos do poeta Hölderlin, afirma: “A minha arquitectura é fria e sem linguagem” (p. 75). 

Frieza e silêncio que não são relativos ao purismo minimalista, mas à única forma rigorosa de ver o modo como todas as coisas se sobrepõem. Frieza e silêncio que encontram no teatro a forma arquitectónica por excelência, “porque o teatro tem a ver com um acontecimento: o seu início, o seu desenvolvimento e a sua conclusão. Sem acontecimento não existe teatro e não existe arquitectura” (p. 80). E também porque o teatro, diz Rossi, é o lugar onde acaba a arquitectura e começa o mundo da imaginação e do insensato (p. 105). Descobrir o lugar onde acaba a arquitectura é descobrir o lugar onde começam as coisas da Terra e é isso que leva Rossi a afirmar, numa poderosa síntese do texto, que este livro podia intitular-se “Esquecer a Arquitectura” — “porque posso falar de uma escola, de um cemitério, de um teatro, mas é mais rigoroso dizer que falo da vida, da morte, da imaginação” (p. 120).

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