As danças, as árvores, as crianças e as famílias delas

Este ano são esperadas cerca de 30 mil pessoas no recinto do Andanças, junto à barragem de Póvoa e Meadas, em Castelo de Vide. O Festival Internacional de Danças Populares é, cada vez mais, o festival da família e da sustentabilidade.

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António Carrapato
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Mário Rainha Campos tem as mãos cheias de tinta vermelha. Já “limpou” a pincel o prato de tinta verde, depois de ter feito o mesmo com o recipiente onde houve tinta amarela. O da tinta azul também já estava quase seco e, naquele momento, já não lhe apetecia mais pincéis. Mergulhou as mãos no vermelho e começou a pintar árvores. “Tocar numa árvore é tão bom”, disse Mário para Carolina, de três anos, que passava por ali e tinha parado para ajudar. “Esta árvore ficou muito mais bonita desde que passaste por aqui”, disse-lhe ele. Logo depois apareceu Inês, de sete, que sugeriu fazer numa das árvores um arco-íris com o resto das tintas. “Boa ideia. Vamos tornar este espaço ainda mais bonito”, aceitou Mário Rainha.

O calor do Alto Alentejo em Agosto e as sombras trazidas pelas árvores que pontuam todo o recinto tornam o espaço “Anfiteatro”, onde Mário Rainha tinha terminado a primeira edição diária do atelier “Toca a desenhar”, num local ainda mais bucólico. O pequeno palco foi improvisado no meio do leito de um regato, tinha sido acabado de pintar com os pés dos participantes, na forma de espiral. Era daí que vinham as tintas com que Inês e Carolina acabaram a pintar árvores, a convite do animador cultural. E este “Toca a desenhar”, que decorre em todos os sete dias que dura o festival, sempre às dez da manhã, acaba por ser uma oportuna síntese que permite explicar o muito que todos os anos traz quase 30 mil pessoas ao Andanças, o Festival Internacional de Danças Populares.

Organizado pela Pé de Xumbo, uma associação cultural de Évora, há 19 anos consecutivos, o Andanças já se impôs no mapa dos festivais de verão. Este ano, e até domingo, são esperadas 30 mil pessoas pelo vasto recinto, junto à barragem de Póvoa e Meadas, em Castelo de Vide, onde pontuam espaços idílicos como o “Anfiteatro” onde Carolina e Inês dançaram com as árvores e com as tintas. Mas é justo dizer que este é um festival diferente dos outros. Não há bandas de culto nem cabeças de cartaz, nem há marcas a fazer promoção de produtos travestidos de experiências.
 
O conceito do “Toca a desenhar” foi pensado há três anos, ainda o Andanças decorria na aldeia de Carvalhais, em São Pedro do Sul. Acabou por ser testado na Casa da Cerca, em Almada (onde Mário Rainha Campos trabalha), mas é ali, no meio da natureza, e a defender os valores de comunidade e do ambiente que ele faz mais sentido. “A dança não é mais do que o desenho do corpo, no espaço e no tempo. A nossa proposta é trabalhar o conceito do desenvolvimento afectivo, trabalhar a arte da relação, seja entre casais, entre pais e filhos, ou entre desconhecidos, através da massagem e do desenho”, explica.

O “Toca a desenhar” é só um atelier. É uma entrada numa grelha de sugestões diárias que apresenta, em média, 70 propostas diferentes, desde workshops de dança a bailes, de sessões de cinema a contadores de histórias ou de estrelas, de concertos a arruadas, de passeios históricos a oficinas de culinária e artes tradicionais de vários pontos do mundo. Variedade e diversidade são aspectos fundamentais deste festival onde as famílias são bem-vindas e há espaços e actividades pensadas para crianças de todas as idades.

Voluntariado e comunidade
Se a dança é o principal atractivo — e é nos palcos montados em espaços que permitem alguma clemência do calor que se podem aprender os primeiros passos de danças de todo o mundo, desde as orientais às irlandesas, ou praticar as danças de par e de roda, as valsas e os tangos, as polskas e os mambos —, a verdade é que não faltam oportunidades e desafios para conhecer aspectos de outras culturas, sem ter de mexer os pés de forma coordenada (embora seja difícil resistir). E há milagres que acontecem, como os didgeridoo, o instrumento australiano, que conseguimos construir com rolos de papel higiénico (o autor do milagre da multiplicação chama-se Rodrigo Viterbo) ou o grupo coral que surge do nada, sob a orientação de Sebastião Antunes na sua oficina de “Canto e adufe beirão”.

O importante é participar, fazer parte da comunidade que o Andanças se empenha em construir ano após ano.
 
E o que se nota, mesmo para quem vem ao Andanças pela primeira vez, é que existe no ar a sensação de que toda a gente conhece toda a gente de algum lado. Os monitores que organizam um atelier à tarde vão estar à noite num dos palcos a liderar um baile, e que a probabilidade de encontrar a voluntária que nos deu indicações no parque de estacionamento à noite a estender a toalha, bem perto de nós, nas margens da barragem no dia seguinte é elevada.

Catarina Serrazina, membro da Pé de Xumbo, explica que, dos 30 mil participantes esperados nos sete dias de festival, um terço não terá pago entradas. Entre voluntários e artistas (são cerca de 700, oriundos de mais de uma vintena de países), vendedores do Mercado Andanças (onde se encontra à venda artesanato e produtos naturais) e trabalhadores dos Taskos (os espaços de restauração e bebidas) há dez mil bilhetes atribuídos pela participação activa na própria organização do festival. As acções com vista ao desenvolvimento local não ficam meramente inscritas na carta de intenções. Tanto no Mercado como nos Taskos há 30% dos lugares atribuídos por concurso destinados à população da região. É por isso que José Pedro Lindo, um jovem de Castelo de Vide, está atrás de um balcão a vender sumos naturais e talhadas gigantescas de suculentas melancias. “O ano passado fui voluntário, a fazer o jornal Andanças. Este ano aventurei-me com mais dois amigos a tentar esta experiência. Acredito que vai correr bem”, sorri, optimista. É, também, por isso, que os fornecedores da Cantina Andanças (onde são servidas, também por voluntários, milhares de refeições diárias, ao almoço e ao jantar) são preferencialmente produtores locais.

Na quarta-feira o menu servido obedecia ao critério “Quilómetro Zero”, na expectativa de servir um máximo de produtos provenientes de um raio de menos de 20 quilómetros. Não será, também, voluntário quem quer, mas apenas quem se submete a um processo de candidatura, onde são avaliadas competências e incentivadas características pessoais de organização e capacidade. Este ano apareceram mais de 1500 candidaturas. Foram aceites apenas metade.

Vítor Gomes é um desses casos. Esteve no ano passado com a mulher e dois filhos, de nove e seis anos, em três dias de festival. “Soube a muito pouco”, explicou. Este ano candidatou-se como voluntário e a mulher fez o mesmo. “O objectivo era um de nós ser apurado, para podermos estar uma semana inteira no Andanças. Acabámos por ser os dois. Viemos na mesma, e claro que trouxemos os nossos filhos”, explica este informático, residente em Lisboa. Ele foi colocado no “lavatário”, a parte da equipa da Cantina que está encarregada de lavar a louça. A mulher, enfermeira, foi colocada no posto de socorros. Trabalham quatro horas por dia, quase sempre em horários desencontrados.  Os filhos, Simão e Vicente, não têm de que se queixar. “Está a ser uma experiência óptima. Diferente do ano passado, ainda mais enriquecedora”, concluiu.

A bioconstrução  
Simão e Vicente “vivem” praticamente no “Espaço Criança”. Têm muitas actividades à disposição, ligadas à dança e ao relaxamento, ao teatro e à improvisação, às oficinas artísticas (aprender a fazer marionetas, por exemplo) ou às ligadas à sustentabilidade. Isto quando não estão com os pais, na sempre estimulante actividade de “acampar” ou a dar mergulhos na barragem. A organização do festival diz que este ano estão mais crianças do que nunca. Quem circula pelo recinto percebe que não haverá exagero — há sempre um carrinho de bebé no horizonte. Os números ajudam a perceber a dimensão, até porque todas as crianças até aos 12 anos têm entrada gratuita e uma pulseira especial. Na segunda-feira, primeiro dia do festival, entraram 270 crianças no Andanças; na terça-feira, 373; na quarta, 451; ontem, até às 13h00, já ia nas 320. E nem Simão nem Vicente entram nesta contabilidade, porque os voluntários chegam sempre dois dias mais cedo.

Outro aspecto que salta à vista (ou que se entranha nos ouvidos) é a presença de estrangeiros no recinto — nem todos são artistas, e há muitos espanhóis no terreno, podemos estimar. Mas sobre esses não é possível obter números concretos. “Só no final do festival, e concluídos os inquéritos que estamos a fazer durante o evento”, explica Catarina Serrazina.

O que já é indesmentível é o facto de este festival deixar uma marca para o futuro a quem nele participa. O respeito pelo ambiente e pela natureza (nem que nos apeteça muito, não nos vão deixar trazer a lata de refrigerante do balcão do bar: temos mesmo de usar a caneca de alumínio que se tornou imagem de marca do festival, e vamos habituar-nos a isso) e o contacto directo com formas mais sustentáveis também em termos sociais e económicos. A “EcoCasa” que Ricardo Fernandes se prontificou para construir na área destinada aos artistas, usando todas as técnicas de bioconstrução (que aproveitam materiais reciclados e materiais locais), é disso exemplo. Uma parede é rocha, outra é de pneus e terra compactada, experimentou o cobe (feito com terra, palha e areia) e a técnica da taipa (muito usada no Alentejo). “O homem sempre soube construir as suas casas. Não foi sempre com recurso à banca e ao crédito. Há outras formas de viver a vida, de a aproveitar”, argumenta.  Há, com certeza. E até domingo passarão por essa experiência quase cerca de 30 mil pessoas.

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