Andou um xamã pouco disfarçado no Jazz em Agosto

Como se juntasse três concertos num só, o projecto Big Rain de Franz Hautzinger fez da combinação improvável dos seus elementos uma fórmula espantosamente bem-sucedida. Mas seria a figura do japonês Keiji Haino a marcar as últimas noites do Jazz em Agosto.

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O guitarrista japonês Keiji Haino MÁRCIA LESSA/FCG
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O trompetista Franz Hautzinger MÁRCIA LESSA/FCG
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Franz Hautzinger Big Rain MÁRCIA LESSA/FCG
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Luís Lopes Lisbon-Berlin Trio MÁRCIA LESSA/FCG
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Luís Lopes Lisbon-Berlin Trio MÁRCIA LESSA/FCG

No instante em que o guitarrista japonês Keiji Haino calça umas luvas pretas e se dirige para a sua mesa de apoio, cheia de pequenos artefactos que vai usando durante a actuação, já tudo é possível. Não é apenas a sua presença espalhafatosa e eléctrica que contribui para o alargamento súbito das fronteiras do imaginável em palco.

Ao longo de toda a prestação da formação Big Rain, liderada pelo trompetista Franz Hautzinger, dir-se-ia que vários concertos acontecem em simultâneo: um deles é a soberba relação entre Jamaaladeen Tacuma no baixo e Hamid Drake na bateria, em que um poço sem fundo de funk e swing se faz acompanhar por uma percussão extasiante com sugestões africanas e latino-americanas numa prodigiosa exploração rítmica (suporte pouco óbvio para tudo o resto que acontece); depois, com a trompete recheada de efeitos, Hautzinger parece caminhar solitariamente num universo paralelo, entretido num vai-vém constante entre Terra e Marte; Haino, por seu lado, tanto toca uma guitarra possuída como grita ao microfone, salta no palco para produzir som com os pés ou agita uma mola espiral amplificada.

Quando calça as luvas, portanto, tudo se espera, ao mesmo tempo que a propensão para o choque é já uma coisa residual por esta altura. Aquilo a que assistimos e que motiva a entusiasmada ovação no final do concerto justifica-se pela incredulidade. Estas aparentes peças soltas e que parecem ignorar-se mutuamente, como por efeito de uma qualquer revelação soam não a uma música esfrangalhada e desarticulada, mas antes a algo que teoricamente só tinha razões para falhar. Big Rain, se assim o podemos dizer, é uma péssima ideia com resultados gloriosos. E tudo se justifica pela imensa musicalidade emprestada a cada acção. Se a ligação entre Tacuma e Drake é um autêntico banquete auditivo, um festim rítmico em que o funk pode soar a uma coisa esquálida para logo a seguir encher garbosamente todo o Anfiteatro ao Ar Livre, as investidas raivosas de Haino na guitarra soam sempre estranhamente adequadas, tanto quanto a altura em que pegando naquilo a que poderíamos chamar chicotes (e para os quais necessita das tais luvas) chibateia sons de tempestades eléctricas, como um xamã em transe. Uma vez mais, nada disto soa gratuito, antes improvável e revelador.

Uma quase selvajaria

Haino é de tal forma magnético em palco que tudo parece passar por ele e até o facto de Hautzinger dar nome ao projecto se torna meramente acidental. O que apenas reforça a presença do projecto Big Rain nesta edição do Jazz em Agosto fértil em guitarristas. Antes, segunda-feira, o francês Marc Ducret apresentou a sua Real Thing #3, etapa final de um ciclo nascido da leitura de Ada, obra do escritor russo Vladimir Nabokov. Mas o outro lado da estranheza vivida com o Big Rain sentir-se-ia na terça-feira, diante da ponte musical erguida pelo português Luís Lopes na guitarra e pela secção rítmica constituída pelos alemães Christian Lillinger e Robert Landfermann. De todos os concertos desta 31.ª edição, revelou-se até agora a proposta mais radical e de mais difícil digestão.

Amparada em grande medida pela exploração exímia de Lopes do seu lado noise e por um dramatismo frenético e dado ao exagero do excelente baterista Christian Lillinger, a linguagem do Lisbon Berlin Trio assentaria em grande parte numa quase selvajaria sonora, altamente fragmentada e em que os motivos reconhecíveis como tais pouco serviriam de âncora. O risco era grande, mas é esse claramente o espaço de intervenção deste grupo, num percurso crescente de estilhaçamento desde que se juntaram em 2011. Valendo-se muitas vezes de um estado de tensão a três, essa tensão ressaltou igualmente, sem grandes ricochetes, para um público ao qual se exigia estômago forte e disponibilidade máxima.

Desigual, o concerto funcionou quando Lopes incendiou o seu lado da ponte. E isso conseguiu-o sobretudo quando se permitiu uma abordagem desvairada da guitarra no seu modo convencional (tocada com ambas as mãos) e nos primeiros blocos de gestão de ruído (dobrado em posição de ataque, ameaçando o amplificador com a guitarra e extraindo-lhe rumores sombrios que nem sempre foram bem explorados pelos outros dois). Seria talvez desejável um maior equilíbrio entre os dois estados, para que a provocação sonora, também ela, não ficasse à beira de ruir e de se confundir com os detritos que lhe servem de matéria-prima.

Partindo para a sua sequência final, o Jazz em Agosto apresenta agora três noites com a guitarra de Fred Frith em primeiro plano.  

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