Primárias, salto qualitativo para a democracia ou engenharia partidária?

Se a experiência eleitoral no PS for bem-sucedida, o PSD acabará por adoptá-la, acreditam os politólogos ouvidos pelo PÚBLICO. Um “super” primeiro-ministro é uma das desvantagens desta disputa

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Sucesso das primárias é duplicar a comunidade de militantes, diz António Costa Pinto Nuno Ferreira Santos

O processo de eleições primárias que se vive no interior do PS pode ser um salto qualitativo para a democracia, rapidamente adoptado pelo PSD se for muito participado, mas também pode ser um tempo perdido. Quatro politólogos e um filósofo reflectem sobre um modelo que depende muito de factores como a discussão com a sociedade civil, o reequilíbrio de forças internas depois da votação e o próprio número de votantes.

Há, além disso, dois calcanhares de Aquiles nesta proposta feita inicialmente pelo actual secretário-geral do PS, António José Seguro. Por um lado, ter nascido refém de um desafio concreto à liderança e, por outro, o objectivo do cargo de primeiro-ministro.

A menos de dois meses do desfecho eleitoral que coloca frente-a-frente António José Seguro e António Costa, o PÚBLICO conversou com cinco académicos - José Adelino Maltez, André Freire, António Costa Pinto, Paula do Espírito Santo e José Meirinhos.

Meirinhos, professor catedrático, investigador e presidente do departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, deixou um alerta inicial: “As nossas preferências têm sempre influência na nossa posição. Não há opiniões totalmente isentas”. Céptico sobre um processo que lhe parece “improvisado” para responder ao desafio lançado por Costa a Seguro, o filósofo partilha a “perplexidade” destas “primárias servirem para escolher uma coisa que nem sequer existe no nosso sistema”.

André Freire, professor, investigador e director da licenciatura em Ciência Política do ISCTE, em Lisboa, levanta justamente reservas a uma “boa medida” que corre o risco de ser liquidada porque aplicada da maneira errada: “Até simpatizo com a ideia de primárias, mas não para candidato a primeiro-ministro. Aliás, é uma figura que não existe do ponto de vista constitucional. O primeiro-ministro e o governo não são eleitos, são nomeados pelo Presidente da República tendo em conta o resultado das eleições para o Parlamento”. E pergunta: “O Presidente ficaria constrangido a aceitar aquele primeiro-ministro? E se o próprio quiser sair como aconteceu com Durão Barroso quando foi para a Comissão Europeia, ficamos num impasse político?” Ao lado destas dúvidas, Freire apresenta outra vulnerabilidade, “a de um sistema que já é “super concentrado no primeiro-ministro, tanto que o professor Adriano Moreira nos anos do cavaquismo chamou-lhe ’presidencialismo de primeiro-ministro’”.

Mas recuemos ao último dia de Maio e à “batalha do Vimeiro”. Reunida a comissão nacional do PS, António José Seguro propôs a realização de eleições primárias para o cargo de primeiro-ministro, em detrimento de eleições directas (nas quais votam apenas militantes do partido), seguidas de um congresso. O contexto em que Seguro apresentou a ideia não é neutro, como explica Freire: “Tudo isto está cheio de contradições. Seguro há uns tempos era contra, de repente viu-se acossado na liderança e lançou esta ideia para ganhar tempo e aparecer, de algum modo, como um líder de grande abertura. A proposta enferma disto.” A alternativa era ter discutido “no interior do partido e vertido a proposta nos estatutos”, diz.

José Meirinhos também tem dúvidas se um processo refém da disputa pela liderança, não acabará por ficar condicionado no seu sucesso. “A maneira como foi feito incentiva os cidadãos a desconfiarem. Se é um processo que serve apenas para os candidatos arregimentarem apoios e não ouvirem os cidadãos, então é um tempo perdido”, afirma. Com a “fragilidade” de estas primárias terem excluído à partida outras candidaturas, mesmo que agora o regulamento preveja a possibilidade até 14 de Agosto. “O processo não permitiu a emergência de múltiplas propostas. Essa fase prévia foi eliminada, agora está prevista, mas não foram criadas condições, de facto, para que isso acontecesse”, diz o professor de Filosofia.

À pergunta sobre se isto foi uma manobra política, José Adelino Maltez, professor catedrático e investigador no ISCSP, em Lisboa, responde que “Seguro tinha vontade de poder e quis fulanizar a questão. Não tem nenhuma diferença programática face a Costa. É uma luta política e é essa incerteza quanto ao resultado que pode levar muita gente a participar”.

“Falta muito povo”

Maltez contextualiza que são sobretudo os partidos de centro-esquerda (França, Itália, Espanha) a trilhar o caminho das primárias abertas, em que votam militantes e simpatizantes. Elas podem, por isso, constituir um salto qualitativo de abertura dos partidos à cidadania, dando resposta a um modelo de directas falido em termos de participação. “Há uma crise dos partidos como entidades que monopolizam a representação popular. As directas para líderes tiveram uma derrocada participativa. Basta ver os números. Passos Coelho [eleito] com 15 mil votos, na última eleição, Seguro à volta de 24600 votos … Isto somado é menos do que os eleitores do Sporting e do Benfica”, diz o professor de Ciência Política.

As primárias podem constituir, de facto, “o embrião” para os cidadãos participarem mais nos aparelhos partidários e, consequentemente, em actos eleitorais, defende Paula do Espírito Santo, professora e investigadora também do ISCSP. Mas deixa o aviso de que “o estreitamento das relações entre eleitos e eleitores deve constituir um processo, um caminho, que não se esgota apenas no dia das eleições, mas que deve ser promovido pelas elites partidárias”.

“Uma das grandes criticas que se faz à classe política e aos aparelhos partidários é viverem longe da sociedade civil, terem fronteiras muito estanques, em que a comunidade militante e o clientelismo partidário, no fundamental, dominam”, sintetiza António Costa Pinto, investigador e professor no ISCTE. Assim, acrescenta, “este processo também pode ser uma resposta a isso, ainda que pequena”.

José Adelino Maltez partilha justamente da tese de que as primárias têm sido adoptadas como “forma de regeneração dos partidos”. No caso português, refere, ”os partidos são arquipélagos, zonas de influência de alguns autarcas, pessoas importantes, como se vê no PSD…” A consequência é que “falta muito povo” nos partidos.

A resistência à mudança é uma característica apontada por Paula do Espírito Santo. “Os estatutos partidários são pouco permeáveis à mudança”, explica. E a excepção parece mesmo residir em “motivos de força política interna”. Este argumento é partilhado também por José Adelino Maltez e António Costa Pinto, que acreditam que, dependendo da participação de votantes, o princípio das primárias pode rotinizar-se. “Estas primárias vão ser muito importantes do ponto de vista da engenharia partidária. Se tiverem sucesso, rotinizam-se. O PSD poderá eventualmente vir a adoptá-las”, diz Costa Pinto. E acrescenta Maltez: “Nós temos alguma resistência a mudar. O PSD vai cair nisto, inevitavelmente. Isto vai ser uma onda que vai afectar o PSD a curto prazo”. Paula do Espírito Santo analisa com outras reservas, ao afirmar que “ a mudança surge quase sempre em momentos de reconstituição, e sublevação, partidária interna”. Como tal, acrescenta, “poderá não ser previsível que este caminho seja exemplo a seguir por outras forças políticas, principalmente de quadrantes ideológicos diferentes do PS”.

Sucesso? 100 mil

Alheio ao “sucesso” das primárias não é com certeza o número de participantes. Paula do Espírito Santo considera que as primárias podem contribuir para uma maior “transparência” pública das decisões partidárias, mas também podem ter “um efeito de desilusão acentuado em face de uma expectativa excessiva sobre os resultados do processo de participação”.

Num partido como o PS, com cerca de 80 mil militantes, qualquer resultado abaixo dos “três dígitos” não será animador. “Sucesso é duplicar a comunidade de militantes, uma participação fora do circuito militante”, aponta Costa Pinto. Maltez coloca a fasquia nos 100 mil votantes e põe o dedo na ferida: “O PS não é um partido de militantes como o PSD, é muito mais fraquinho, navega numas águas da esquerda onde há vários concorrentes”.

E dando um passo em diante, como é que as primárias podem afectar a organização interna dos partidos? “Não afectam absolutamente nada se não houver imediatamente uma reforma da lei eleitoral, nomeadamente com a lista aberta, ou seja, os partidos proporem um conjunto de nomes e depois o eleitor escolher os que quer”, diz Maltez. Para Paula do Espírito Santos, “a discussão pública, académica e política sobre a reforma do sistema eleitoral continua adiada por falta de coragem política”.

Os cartazes espalhados pelo país com apelos ao voto afinal não “enganam”. Ou seja, “na prática, as campanhas eleitorais já são para a escolha do primeiro-ministro, desde o cavaquismo que personalizámos o poder e não a escolha de deputados”, diz Maltez. Costa Pinto também é da opinião que a crítica da “pessoalização” não colhe: “A tendência para a pessoalização já é muito significativa nas democracias contemporâneas, nomeadamente nas campanhas eleitorais notamos claramente que a componente pessoal é mais importante do que era. Desse ponto de vista não há nada de novo”.

Há uma dúvida que, no entanto, fica no ar. Servem estas primárias para responder também a fenómenos como a surpresa da eleição de Marinho e Pinto para o Parlamento Europeu? Uma faca de dois gumes, na verdade. “Este tipo de eleições primárias pode ser uma maneira de um partido como o PS responder a esse tipo de desafios, mas pode, simultaneamente, contribuir para um maior fraccionamento interno”, acredita Costa Pinto.

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