Teatro de vida, de raiva e de desconforto. Eis aquele por quem não esperávamos: Dimitris Karantzas

Na recta final do Festival de Avignon uma pequena jóia na qual ninguém apostava: La Ronde du Carré, encenação furiosa de um texto grave que é mais do que a simples metáfora sobre a crise na Grécia.

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La Ronde du Carré Christophe Raynaud de Lage / Festival d'Avignon
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Notre Peur de n'Être Christophe Raynaud de Lage / Festival d'Avignon
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Notre Peur de n'Être Christophe Raynaud de Lage / Festival d'Avignon
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Notre Peur de n'Être Christophe Raynaud de Lage / Festival d'Avignon
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Dimitris Karantzas Marios Valassopoulos
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Fabrice Murgia Jean-François Ravagnan

Às vezes é na porta ao lado que se encontram as surpresas. As atenções estavam todas concentradas em Fabrice Murgia, belga de 31 anos, leão de prata da Bienal de Veneza, escolhido por Olivier Py como nome para marcar a edição 68 do Festival de Avignon. A lista de co-produtores fazia o pleno dos teatros do seu país, da Flandres à Valónia, com digressão pelo interior da França e a protecção de vários teatros que olham para as redes como o maná das suas programações. Mas Notre peur de n’Être não é, hélas, a peça de que se estava à espera.

 E Murgia, por mais emocionado que se possa ter apresentado naquele que é o seu primeiro Festival de Avignon, arrisca menos do que o nome que todos ignoraram, cansados de um festival anémico, raras vezes consensual, até nas razões da apatia. Eis-nos, então, enfeitiçados por Dimitris Karantzas, 26 anos, que não apenas veio pela primeira vez a Avignon, como saiu, pela primeira vez, enquanto encenador da sua Atenas natal. As nossas boas-vindas então a quem, ao contrário de Fabrice Murgia, recusa esconder-se atrás da metáfora do auto-isolamento social e atira as personagens pelo precipício das suas vidas. Nada de efeitos visuais, nem de textos passados a imagens, porque no palco aberto, descarnado, cheio de fissuras, o corpo dos actores disfarça mal a azia permanente criada por situações que de tão banais que são se tornam na única coisa de que vale a pena falar.

La Ronde du Carré, de Dimitris Dimitriadis, é a Grécia contemporânea posta a nu, onde a crise serve de álibi para justificar a impossibilidade de diálogo. É, afinal, e ao contrário de Notre peur de n’Être, uma peça sobre a impossibilidade de se ser, porque para se ser é preciso que os outros nos aceitem. Fazendo do tempo um aliado, Dimitris Karantzas abraça a diferença geracional de Dimitriadis (1944) e faz do texto assinado pelo dramaturgo tido como herói nacional pela coragem com que enfrenta os fantasmas sociais e as utopias mesquinhas um panfleto sobre o adormecimento emocional provocado pela primeira de todas as crises: a falta, ou o excesso, de ambição pessoal.

Dimitris Karantzas diz-nos que “é muito fácil querer ver em tudo o que se faz na Grécia hoje um retrato comentado do país”. La Ronde du Carré não é, assegura, “mais político por se produzir hoje”. É o que é. O desassombro do seu discurso é comovente para quem foi lançado, de forma quase displicente, para a arena do circuito internacional, aterrando no fim de um festival que lhe deixou as salas vazias. Karantzas fala-nos da dança de Maguy Marin, do cinema de Bela Tarr e de Jean-Luc Godard, para nos explicar o modo como o tempo atravessa o corpo dos 11 actores que nos intimidam pela sua entrega. Corpos que o autor do texto não identifica senão através de cores e que o encenador contrai em linhas rígidas que mal usam o palco. Histórias passionais que terminam em morte, como se quisessem responder, fisicamente, à morte da alma e da esperança. Três horas de luzes acesas na plateia, para deixar ver quem se vai embora, exaurido pelo falso formalismo de um espectáculo corajoso, feito a partir das tensões entre personagens que se querem aproximar de outras personagens, mas que se impedem sem se explicarem, ou mesmo sem perceberem porquê. Espectáculo que abraça uma liberdade de pensar a presença do actor no centro de um texto e, por isso, se aproveita do perigo causado pela proximidade de fim que cada palavra evoca.

Nada disto existe na encenação de Fabrice Murgia, demasiado próxima do que já conhecemos, ansiosa por pertencer ao universo familiar de Joel Pommerat e Falk Richter pelo modo como abusa de um corpo virtual, assumindo que o desaparecimento da identidade da personagem se pode fazer pelo desaparecimento da sua presença física em palco. Histórias cruzadas de inadaptados em que a encenação se esforça por evidenciar o desejo de fuga da família, do trabalho, do destino. Teatro cheio de efeitos dramatúrgicos que se impõem e sobrepõem. E, por isso, tantos vídeos, tanto fumo, tantos telões e tantos módulos cenográficos que tentam criar espaços dentro do espaço e, afinal, bastava olhar para o palco e não apressar o desejo de imposição da ficção como realidade.

Murgia deixa-se inebriar pelos efeitos visuais e pelas elipses do texto que não deixam espaço para que os actores respirem, manietados por uma encenação feita de acções constantes, apressadas, breves, que se atropelam. Ansioso por pertencer a um circuito em que a técnica e a forma asfixiam o conteúdo, texto, encenação e direcção de actores são prisioneiros de um movimento feérico, falsamente dormente, crente na eficácia do efeito, ausente de desejo e de presença.

Contudo, o Ginásio Aubanel encheu-se sempre para aplaudir um teatro velho, previsível, adormecido, enquanto na Ópera Théâtre a sala ia ficando cada vez mais vazia, abandonada por espectadores cheios de medo da duração e dos silêncios. Uma plateia que pedia sempre mais e afinal se revelava incomodada com um teatro cheio de vida, de raiva, construído a partir das suas próprias ruínas. Este é um teatro para o qual temos de correr e nos está sempre a escapar pelas mãos. Este é um teatro que não deseja pertencer a nada. A sua força reside na escolha que nos obriga a aceitar que a metáfora não habita o palco mas a plateia.

Crítico de teatro e dança

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