A fotografia como prazer e como trabalho

Artur Pastor dedicou-se durante décadas a um género de fotografia tipológica que classificava, catalogava, organizava e dividia sectores de actividade, géneros, espécies e famílias de produtos agrícolas num exercício de cientismo visual. Hoje, esse trabalho, que é também um acto de devoção, pode ser visto no Arquivo Municipal de Lisboa/Fotográfico.     

Classificação de Ortópteros, Estação Agronómica Nacional
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Classificação de Ortópteros, Estação Agronómica Nacional

Há pouco fotógrafos em Portugal com uma carreira tão longa como a de Artur Pastor (Alter do Chão, 1922 – Lisboa, 1999). Andou de máquina ao peito durante mais de 60 anos. Mas a longevidade da sua actividade enquanto fotógrafo está longe de ser o principal atributo que deixou na fotografia portuguesa. As marcas de uma procura incessante pela perfeição da composição ou enquadramento estão bem presentes nas salas do Arquivo Municipal de Lisboa

Fotográfico, onde as imagens de Artur Pastor se mostram numa exposição que atravessa as principais facetas da sua obra. Para lá de um exímio controlo técnico da câmara que mais tempo o acompanhou (Pastor era conhecido pelos seus pares como “o domador da Rolleiflex”), o percurso proposto pelos comissários Luís Pavão, Ana Luísa Alvim e Ana Saraiva respira todo o prazer com que o fotógrafo abraçou a arte que viria a tornar-se não só a expressão de um apelo criativo, mas também um modo de ganhar a vida.

A partir da segunda metade da década de 1940, Artur Pastor começou a expor com regularidade em Portugal e no estrangeiro. Ganhou reputação de perfeccionista à medida que as suas fotografias foram conquistando prémios nos salões e concursos que dominaram a cena fotográfica dos anos 40 e 50. Mas uma actividade que poderia estar condenada ao mero “passatempo visual” ou aos desafios da técnica cruzou-se com a sua área de formação profissional (outro caso raro na história da fotografia em Portugal). Depois de ter concluído o curso de Regente Agrícola e de ter sido admitido no Serviço de Fomento e Inspecção Técnica da Batata-Semente, é transferido no início da década de 50, para a Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas, a fim de desempenhar o cargo (inédito?) de “regente agrícola fotógrafo”.

Numa época em que os fotógrafos profissionais estavam quase todos ao serviço da propaganda do Estado Novo, a obra de Pastor revela laivos criativos que se desviam do controlo absoluto e da produção que se dedicava a construir um país imperial, moderno e pacato.

A actividade humana ligada ao trabalho cedo fascinou o olhar de Pastor (a agricultura é um dos seus tópicos de eleição). Embora as imagens “poéticas” e controladas ao milímetro sejam uma das constantes do seu trabalho (naturalmente influenciado por uma época em que a abertura a tendências vanguardistas era mínima ou inexistente), esta exposição revela fotografias onde o instantâneo, o incontrolável e a confusão também marcam presença (conjunto sobre o copejo do atum ao largo de Tavira é um bom exemplo disso).

Durante décadas, Pastor dedicou-se, profissionalmente, a um género de fotografia tipológica que classificava, catalogava, organizava e dividia sectores de actividade, géneros, espécies e famílias de produtos agrícolas num exercício de cientismo visual que agora rompe a casca do documento asséptico, para se transformar num objecto visual belo e inusitado. Um painel com uma ínfima parte das fichas de trabalho de Artur Pastor (com textos meticulosos) é um regalo para a vista e um dos pontos altos da exposição do Arquivo, que pode ser visitada até ao dia 31 de Agosto (há extensões da mostra no Museu da Cidade e na Colorfoto).

Tanto nas cópias de trabalho como nas ampliações dirigidas a exposições (com intenções mais artísticas), a obra de Pastor deambula entre os contrastes do “mundo novo” e do “mundo velho”. O humanismo que marca toda a sua fotografia não é político, nem moral — é, sobretudo, estético. Os dois livros que nos deixou, Nazaré (1958) e Algarve (1965), demonstram-no. Como demonstram, como bem notou Luís Pavão, uma absoluta sinceridade autoral, que se expressa no deslumbramento e amor que sentia pelo país e pelas suas gentes. Porque, à sua maneira, a fotografia é também um acto de devoção. Daqueles que procuram dar imagem a coisas tão imateriais e vaporosas como a identidade de um país.

Variedade de frésia amarelada, Lisboa, 1973
Variedade de frésia amarelada, Lisboa, 1973
O clima e a paisagem, Alentejo, década de 1950
O clima e a paisagem, Alentejo, década de 1950
Composição com vagens, Porto Salvo, 1975
Composição com vagens, Porto Salvo, 1975
Maçãs “Casanova de Alcobaça”, Setúbal, 1953
Maçãs “Casanova de Alcobaça”, Setúbal, 1953
Adubagem da terra, Minho, década de 1950
Adubagem da terra, Minho, década de 1950
Amêndoas da variedade “desmayo”, Lisboa, 1974
Amêndoas da variedade “desmayo”, Lisboa, 1974
Lota na praia dos pescadores, Sesimbra, 1943-1960
Lota na praia dos pescadores, Sesimbra, 1943-1960
Embalagem de morangos, Castanheira do Ribatejo, 1972
Embalagem de morangos, Castanheira do Ribatejo, 1972
Posto do leite da UCAL e Cooperativas Associadas, 1958
Posto do leite da UCAL e Cooperativas Associadas, 1958
Classificação de Ortópteros, Estação Agronómica Nacional
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