Giorgio Morandi e Julião Sarmento: encontro em Turim

Até 31 de Agosto a obra de Julião Sarmento está em diálogo com a de Morandi no GAM

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Parasita (O quotidiano é materno) (2003), de Julião Sarmento
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Natura Morta (1950), de Giorgio Morandi

De entre todos os nomes possíveis, pode não ser o mais óbvio – porquê, afinal, juntar Julião Sarmento e Giorgio Morandi?

“Tal como as garrafas de Morandi desenham paisagens abstractas através do arranjo de formas geométricas opacas, as narrativas de Julião Sarmento partem cada imagem em fragmentos desordenados, aludindo a uma qualidade visionária que apenas o pensamento pode reter”, escreve Danilo Eccher logo no princípio do seu ensaio para o livro que acompanha a exposição Lo Sguardo Selettivo, até dia 31 de Agosto no GAM, a Galeria de Arte Moderna e Contemporânea de Turim.

Com Riccardo Passone, o seu adjunto, Danilo Eccher, director do GAM, assume a curadoria desta que é a primeira exposição individual de Sarmento num museu italiano nos últimos 15 anos. E que abre o terceiro capítulo de Diálogos, uma linha da programação do museu em que autores afirmados e activos na cena internacional contemporânea surgem em confronto com obras ou autores dos acervos da instituição.

Ocupando toda a área do Underground Project do museu, onde somos recebidos pela escultura Lady-in-Waiting (2012), cerca de 30 obras de pintura, escultura e vídeo traçam um arco temporal que acompanha algumas das principais linhas da produção de Sarmento desde o final dos anos 1970 à actualidade. Em diálogo com elas, há as 12 aguarelas de Morandi – todas na paleta neutra e repetitiva do artista.

Morandi (1890-1964) não foi uma escolha dos comissários da exposição, antes de Sarmento, que alude à sua empatia com essa contenção cromática de Morandi: “Nunca fui um artista de muitas cores, por assim dizer. Até nos primeiros tempos, quando dei os primeiros passos, a cor sempre foi muito discreta... [Depois] no princípio dos anos 1990, quando comecei a usar apenas o preto e branco como opção conceptual, via a cor como uma distracção ao que realmente importava no meu discurso. Não é que não adore cores. Adoro, obviamente! Apenas sinto que não preciso delas para o que quero dizer. De qualquer forma, quando e se sinto que tenho que usar uma cor forte, faço-o sem qualquer problema ou remorsos.”

Sobre esta última pulsão, Eccher, por seu lado, escreve: “O peso conceptual da pintura enquanto matéria não jogaria o papel que merece jogar se não transportasse o charme de um tonalismo discreto e silencioso, capaz de abraçar e envolver todo o espectro da cor. As cores exuberantes afogam-se em nevoeiros de luminosidade baça, numa brancura pesada e espessa que procura refugio na sua própria sombra. Julião Sarmento combina uma ênfase deslumbrante na exposição cromática com a elegância sofisticada de um vasto espectro de nuances – um tonalismo erudito e elegante reminiscente dos cinzentos e tons terra de Morandi, uma não-cor que protege a imagem e a salvaguarda de olhares vorazes.”

É precisamente o que acontece com alguns trabalhos de pintura escolhidos para esta exposição. Por exemplo, Silver Lake Blue Hands, um falso díptico de 2010-2011 em que o plano da imagem surge dividido em dois, entre um fundo branco, em cima, sobre o qual parecem emergir as mãos de uma mulher, e uma superfície azul forte, em baixo, que oblitera quase totalmente a imagem subjacente de um edifício de traça modernista.

As mãos de uma mulher e um edifício – o corpo feminino e a arquitectura: os comissários da exposição destacam ambos como temáticas prevalecentes tanto na exposição do GAM como na obra de Sarmento, em geral – apontam, aliás, o vídeo Cromlech, de 2010 – também exposto – como um dos momentos chave em que ambas se fundem. São, porém, temas ausentes do grande tríptico White Veil (2013) que Sarmento fez especificamente para a exposição do GAM.

Para além das aguarelas de Morandi, à colecção do museu Julião Sarmento foi ainda buscar uma peça de Sol LeWitt (1928 – 2007) – uma escultura  em madeira pintada de branco intitulada Complex Form #52 e parte da longa série de trabalhos tridimensionais em que este artista estudou a percepção alterada que um observador, consoante o seu ponto de visão, pode ter de diferentes geometrias e ângulos.

No painel central do seu tríptico, Sarmento sugere uma desmontagem, plano por plano, dessa “forma complexa” de Sol LeWitt. No painel lateral da esquerda insinua uma sequência de formas evocativas de Morandi. No painel da direita surgem as flores presentes em muitos dos seus próprios trabalhos, tanto de pintura como de desenho.

 “O pintor italiano Giorgio Morandi e o artista americano Sol LeWitt, dois artistas que parecem muito distantes mas que mantêm uma pesquisa formal constante, uma característica que Sarmento considera um ponto de partida e de chegada necessário”, escrevem os comissários da exposição.

As incessantes variações de Morandi sobre a página pintada, a persistente análise de formas, volume e espaço de LeWitt – “Sarmento sempre procurou combinar no seu trabalho o detalhe da representação com uma visão [analítica] superior”.  

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