Bifes mal passados

Hábitos, costumes e identidade cultural no Reino Unido, na escrita sarcástica de um dos mais reconhecidos cientistas portugueses, João Magueijo, o físico teórico do Imperial College que questionou um dos pilares da teoria da relatividade de Einstein.

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Estou no cimo de uma serra, estou no céu, ou se calhar voo pelos ares de asas abertas numa nuvem sem borbotos, e vai-se a ver estou a nadar no mar alto sem ter fundo, que ao fim ao cabo isto vai tudo dar ao mesmo: uma grandessíssima arrelia. Não se enxergava uma polegada britânica à frente do nariz, com os cristais de gelo sobre as pálpebras parecia que nem o próprio nariz se via. E é isto vir de férias nesta ilhota do mar do Norte.

Desde as sete da manhã que escalávamos com ardor, suados que nem mulas de carga apesar do feroz briol. Arre que isto não é clima de gente, nem de bicho ou alimária! Só mesmo pela íngreme subida acreditava no que me iam dizendo: que não era aquilo um mar de nevoeiro, nem a morada de deuses indistintos, mas sim a cachola de uma montanha. E porque a escalávamos? “Because it’s there.” Porque a montanha para ali estava, a pobrezinha, e infelizmente há gostos para tudo.

Antes chovera. Chovera gatos e cães, como eles dizem. As ramelas matinais haviam sido lavadas au naturel. Estava tudo empapado, ensopado, o chão era mousse de chocolate, da ralinha. Um ou outro bate-cu deixara marcas, puramente cosméticas, nada de grave. Não chamem ainda a ambulância que lá haveremos de chegar.

Depois veio o ciclone. Vento forte, turbulento, até aventou comigo para o chão, as fuças bem enterradas pelos barros. Estou todo enlameado, cara e tudo, pareço um soldado saído das trincheiras, que isto é mesmo uma guerra contra os elementos, contra os zéfiros, as águas celestes, contra a fúria do Espírito da Montanha! Isto (note-se bem) para mim; para eles, para os indígenas, trata-se apenas de mais um belo dia de lazer, antes do vomitório no pub logo à noite. Um dia bem passado.   

Mas agora o vento apaziguou-se e a chuva quase parou, o que fez com que condensasse este nevoeiro espesso, catarral, e a temperatura descesse ao ponto dos pingos no nariz se terem tornado estalactites. 
Ao longo da manhã a minha companheira de viagem mantivera uma irrepreensível boa disposição — “Ah... this is the life” — tão bom que é passear à chuva e ao vento, e vinha portanto proporcionando um chorrilho ininterrupto de piadas que até eram engraçadas, típico sentido de humor inglês. Eu é que não estou para graças, “foda-se para isto” dito repetidamente e em português marca o limite da minha eloquência. Meu rico Alentejo que trago no coração, ir às conchinhas nos areais, comer um cacho de uvas na modorra do Verão, alarvar com uma açorda e passa daí o garrafão. Os gracejos da minha companheira de viagem não me penetram os ouvidos, de tal forma me vou enrosquilhando no conchego deste mar interno de fantasias.  

Quando finalmente assomamos aos cimos desta serra, a minha companheira de viagem diz-me algo mais severo, mas já lá não estou. Estou a comer carapaus assados na brasa em Sesimbra, papas de serrabulho na Póvoa de Varzim, uma cataplana em Santa Luzia.

Por nós, entretanto, vão passando intrépidos viajantes, arrojados, destemidos, protegidos por fatos espaciais à prova de raios cósmicos e clima britânico. Se estes espessos escafandros aguentam o Inverno em Plutão também suportarão terras de Inglaterra na Primavera, ai esta minha cabecinha, então não me ia esquecendo de vos dizer que se passa isto na Primavera, vejam lá... 

Os viajantes que cruzamos têm expressões empedernidas, fazem lembrar fotografias de pioneiros das explorações polares ou do Evereste, “because it’s there” e já te lixaste, não voltas mais. Continuamos a caminhar, mas o terreno agora aplanou, já não sobe muito. E não chove, só mesmo esta cacimbazinha colada ao nevoeiro. Se calhar estamos mesmo numa nuvem homogénea, nada de claras em castelo, esta nuvem é como o Universo primordial, sem defeito nem imperfeição, que para isso há-de haver ampla oportunidade. 

Não é verdade que nem a penca se vislumbra: olha, ali em baixo estão os meus pezinhos. E mais ao lado, à frente, atrás, vê-se talvez uma jarda ou duas, lá voltamos às medidas imperiais, assim não dá. Não se vê grande coisa, mas percebe-se que progredimos por uma vereda que continua o trilho que seguíramos, mas agora sem altos e baixos, e sem ondular ou serpentear ou lá o que estas coisas fazem quando andam às voltas. 

Na direcção contrária passa um grupo mais numeroso de intrépidos exploradores espaciais, e eu desvio-me educadamente para os deixar passar. Vou a saltar para a berma do trilho, quando a minha companheira de viagem me deita a mão e me puxa para trás:
Trying to top yourself?
Parece que à mistura com as graçolas que não ouvi, perdido na minha casmurrice e devaneios, havia uma informação importante. Estávamos agora a seguir um “ridge”, um tergo, uma cumeada, uma sela entre picos bem estreitinha e sem perdão, para cada lado “a sheer drop”, dois precipícios que, claro está, não se viam no meio daquele nevoeiro. Duas pessoas tinham ali morrido nesse ano. Sem o saber, meio a dormir e a sonhar, tinha andado a fazer equilibrismo na corda bamba, funâmbulo sonâmbulo no meio das nuvens, e agora quase que saltara para o abismo.

Pouco depois atingimos finalmente o ponto mais alto da serra. Quem diria. Não se vê a ponta de um corno. Consta que num bom dia, quando os há, se os há, as vistas são formidáveis, há dois lagos diamantinos, o poeta Wordsworth vinha para cá em busca de inspiração, olha é tão lindo, mas hoje é como mirar uma parede bem caiada, lá estás tu com o Alentejo. 

Recomeça então a chover e penso que se calhar ao menos isto limpa. E de facto desanuvia o nevoeiro porque se põe também um pé de vento, mas a chuva agora é tão densa que a visibilidade não melhora, é uma cortina de água que se desenrola do céu, puxa para cima a persiana. Vamos dar com um grupo de viajantes todos encolhidos por detrás de uns rochedos, uns já tiraram das mochilas as merendas, mais os termos com o chazinho, e lá começam eles aos golinhos, a latirem
Ooooh, lovely!!!
esta gente contenta-se com tão pouco. Estão todos encharcados, não há anoraque que aguente este dilúvio, e o penhasco não oferece grande abrigo à chuva, só ao vento, um bocadinho. Passam-me uma malga:
Would you lika cuppa tea, mate?
não, vai pró caralho, tira-me essa nojice acastanhada da frente, agora um pratinho de percebes e uma imperial é que caíam que nem ginjas, liga primeiro o aquecimento central, não disse isto, claro está, ao invés sorri polidamente e declinei a oferenda, aquilo até nem é má gente, coitados, tiveram foi o azar de nascer nesta porcaria de país e não sabem o que é bom. 

Fico a vê-los a sorver as suas chazadas fumegantes, pinguinhas de chuva a caírem-lhes como num charco. Na minha terra chá é o que se dá a quem está de cama muito mal, coitadinho, vai também uma canjinha Dona Antónia?, muito mal estou eu agora e quem me dera estar na cama, a vida é isto. 

Apreciar o panorama não era opção, portanto damos início à descida. Durante todo este tempo a chuva tinha vindo a agigantar-se, estava agora a “chover de rijo”, como dizia a minha avó, uma bátega das antigas, e o vento não se fazia rogado, um era mata o outro esfola. A água era tanta que parecíamos de facto escafandristas, mas debaixo de água a gravidade não seria assim tão forte, o vento não é certamente e a chuva não bate assim.

E é então que sem aviso rebenta uma daquelas trovoadas que faz um ateu convicto como eu pensar, “bem, lá vem O Todo-Poderoso tirar a prova dos nove à minha esperteza saloia”. Ao barulho da chuva junta-se o ribombar dos trovões, está bonita, a sinfonia, ai que me borro todo. Prosseguimos corajosamente, pelo menos a minha companheira de viagem, eu vou a fazer contas de cabeça, o tal mar interno que tantos dissabores me dá, faço contas como faço nos casinos, calculo a probabilidade de ser fulminado, nos casinos estimo a percentagem de enrabamento que levaria se jogasse e nunca jogo, mas aqui tenho mesmo de jogar roleta russa, porra que lá se vai uma arvorezita e não estava longe, toda feita em carbono, olha as emissões, aniquilada por um raio, que mal Te fez ela, em Portugal isto dava incêndio certo, fogo posto por Deus, esse piromaníaco, mas aqui os elementos fazem de bombeiros voluntários, a conflagração já se encontra controlada, extinta pelas agulhetas dos céus, será que têm banda lá em cima, tuba, bombo e clarinetes, é bonito ser bombeiro.   

Nestas coisas, é sabido, descer é mais difícil do que subir, perguntem a qualquer gato que ficou preso na copa de uma árvore, a miar pelos bombeiros, celestes ou terrenos. Mas com uma tromba de água e rajadas diabólicas ainda é pior. Descer ou esquiar, eis a questão, a verdade é que ia sentado no pandeiro, a deslizar montanha abaixo, até que nem é uma sensação desagradável, pelo menos até se acertar num calhau com os entrepernas, Santa Maria Mãe de Deus que isto pode provocar cancro testicular. 

Viramos uma esquina, ao longo do trilho que recomeçara a ondular ou serpentear ou lá o que estas coisas fazem quando andam às voltas, e eis que nos deparamos com a grande surpresa de uma viagem que já julgava atribulada. Ao princípio ainda supus que se tratasse de mais um “ponto de interesse”, mais uma amabilidade dos elementos proporcionada pelo lazer à inglesa. Mas quando vi a expressão de pânico na cara da minha companheira de viagem percebi que agora era a sério. 

A enxurrada levara consigo o trilho, e uma avalanche de pedregulhos e águas lamacentas seguia agora serra abaixo, por onde antes houvera umas escadinhas de pedra. Uma torrente de água nojenta jorrava rumo ao vale, um novo riacho. Pouco mais abaixo um intrépido viajante tentara avançar por entre as águas e era agora impiedosamente arrastado, eram gritos de ai quem me acode. 

Deu-se isto antes de haver telemóveis, portanto não era simples chamar ajuda, os bombeiros, a protecção civil. Agora, sim, estávamos metidos em grandes e belos sarilhos, atulhados numa boa mousse de diarreia até ao pescoço, brinca, brinca com as metáforas e depois vem-te queixar. Pela enésima vez repeti-me, em português, mas agora a bradar aos céus:
— FODA-SE PARA ISTO!!!!
Fuck that for a joke! — traduziu involuntariamente a minha companheira de viagem.

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Neve na montanha Helvellyn Corbis

Tendo vivido vinte e tal anos em Inglaterra, depois de acumular duras experiências, munido da sagacidade que a rude prática nos traz, hoje em dia quando quero ir de férias, espairecer um bocado, desaparecer um fim-de-semana, a primeira coisa que faço é comprar um bilhete de avião. E fugir deste ilhéu a sete pés! 

Não será o ideal carbonífero nestes tempos de fragilidade do planeta, mas não há mesmo outro remédio. 
Em Portugal vejo os meus amigos irem à praia, “irem à terra”, ou simplesmente passar uma invernal tarde na Costa da Caparica para desanuviar, e invejo-os. Assim é fácil ter uma pegada ecológica mais admissível.

Ao longo da minha estadia neste país que me adoptou, de vez em quando enchia-me de boa vontade e abalava: para Margate, Helvellyn, Swansea, Somerset, Blackpool, St. Andrews, Durham... não faltou cantinho por explorar. E sabem que mais? Vamos lá ser bem claros logo à partida, neste livro supostamente de viagens: a Inglaterra não vale uma corneta. 
Todas as minhas experiências de férias britânicas foram invariavelmente pavorosas, vomitáveis, aberrantes. Más, mas tão más, que às tantas uma pessoa desata a rir daquilo tudo, com aquelas gargalhadas amargas de quem sabe que está na merda e começa a achar piada à situação. Não admira que haja tantos cómicos ingleses, e que o seu sentido de humor seja lendário: o que é que estes desgraçados hão-de fazer? 

Ao longo dos anos foi-se formando o seguinte padrão de comportamentos: depois de mais um fracasso infernal, ao chegar a casa, a promessa cheia de obscenidades e impropérios,
— #%&@-$€, ¢@*@£¡%, #%&@-$€, que nunca mais!
O tempo passa, as memórias esbatem-se e as feridas saram, até que lá vem outra vez o fatal ataque de optimismo:
— Bem, se calhar aquilo da última vez foi um azar que a gente teve...
seguido da confirmação experimental, dias ou mesmo horas depois, de que afinal não fora má sorte nenhuma, isto é mesmo uma bela porcaria, estes gajos não se sabem divertir, arranjem-me mas é um bilhete de avião para o Luxemburgo, pior não há-de ser. 
— #%&@-$€, ¢@*@£¡%, #%&@-$€, que nunca mais!

Até que volvidas inúmeras iterações deste lastimoso ciclo, certo dia nos chega a compreensão de que estas “férias à inglesa” têm algo de genuinamente interessante numa certa maneira de ver as coisas. Há nas misérias lúdicas britânicas algo de fascinante no sentido... — como é que isto se há-de dizer? — no sentido de uma experiência antropológica. O que eu quero dizer é que se vais de férias para Inglaterra é melhor adoptares a postura de um etnólogo em expedição, tipo estás a estudar uma tribo na Amazónia, ou os pigmeus, os Tuaregues, ou vais tomar chá com os nómadas da Mongólia Exterior. E então as coisas ganham de facto um certo interesse.

Ainda não há muito tempo andavam estes gajos de caquis e capacetes coloniais, com um cantil e um fuzil de caçar tigres, a estudar os hábitos dos pretos e monhés — que era assim mesmo que se dizia — e a comunicar os resultados (o número, a disposição e os costumes dos nativos) à respeitável Royal Geographical Society. Consta que a rainha Vitória até mandou vir uma mulher negra de uma das suas posses ultramarinas para servir de live exhibit no Victoria and Albert Museum, a pobre da mulher africana passou o resto da vida lá presa, olha para a preta, tão educativo que isto é.
Os tempos são outros e duvido que instalar um bife numa jaula dentro do Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, alimentando-o a fish and chips, chá e baldes de cerveja, fosse edificante para o público português (muito embora a curiosidade espevitasse se lhe juntássemos uma fêmea, com as roupagens que elas usam aos sábados à noite, para estudo dos rituais de acasalamento desta espécie).

Mas pode ser que um roteiro de fins-de-semana execráveis por terras de Sua Majestade tenha para o público português aquele sabor de uma viagem desconfortável e que no entanto resulta numa experiência enriquecedora, como ir à pesca e enjoar ou participar numa tourada à corda nos Açores e levar uma cornada. Passear por Inglaterra tem as maçadas e os proveitos de ir à selva. E porque é que apreciamos a zebra? Pelas riscas. A girafa? Pelo pescoço. São as anormalidades que nos atraem. E há definitivamente algo de proboscídeo na cultura inglesa: o inglês é o elefante da Europa, com as suas manias, pancadas, peneiras e excentricidades, coisas boas e coisas más, mas coisas que, como a tromba do elefante, mais ninguém tem, e que, portanto, têm interesse, ou pelos menos nos fazem rir. 
Estas minhas expedições no Reino Unido foram, de facto, deveras desagradáveis, mas também uma excursão ao Planeta dos Macacos seria porventura muito incómoda e, no entanto, fascinante. E a Inglaterra, meus amigos, é tal e qual o Planeta dos Macacos.  

Mas deixemos a Primavera britânica e passemos ao pino do Verão. E o que é que se faz quando o Verão faz o pino? Vai-se à praia. Caí nessa esparrela inúmeras vezes, há pessoas muito estúpidas. Vai-se à praia em Portugal, aqui só mesmo se fores atrasado mental. Cometi este erro, mas com uma atenuante: era para satisfazer a curiosidade de ver como era o equivalente inglês da Costa da Caparica. 

Com o snobismo de um alentejano transplantado para Lisboa aos 5 anos, sempre achara que “ir à Costa é foleiro”. Como me enganava! Desde que vim para Inglaterra, a Costa da Caparica tornou-se num símbolo do paraíso para mim, o tipo de praia a ser usado nos anúncios do Bacardi. E foi em demanda do equivalente britânico da Caparica que lhe comecei a dar o devido valor. Os portugueses não sabem o que é mau, são incapazes de ser feios. 
Fui pois buscar o mapa, ajustei as proporções, calculei o homotético londrino da Caparica, revelou-me o cômputo uma terriola de sua graça Margate, no condado de Kent. Havia outras a Sul da foz do rio Tamisa, mas esta foi a que me pareceu melhor. 

Convém lembrar aqui que Londres tem 8 milhões de habitantes, 14 milhões se contarmos com a área metropolitana completa, mas na realidade mais de 20 milhões de pessoas labutam diariamente dentro da cidade. Espero que isto dê uma ideia do que é sair para ir à praia: é o dobro da população de Portugal a tentar fazer o mesmo. Quem se vê numa enorme bicha para as praias da Charneca ou Sesimbra não imagina o que isto é... 

Horas passadas, com muita santa paciência, eu e a minha companheira de viagem finalmente entramos lugarejo adentro: Margate, belo nome. Começo por notar o grande número de lares de reformados, mas não sejamos preconceituosos, vê-se também gente nova pelas ruas, vamos mas é a correr para a praia, espalrar-nos no areal como lagartos, apanhar um escaldão de terceiro grau, ir à água quando houver perigo de combustão. Até estava calor, com os devidos recatos — uns 25 graus, não era mau. A rua principal vai ondulando por aí abaixo, contornando lares e casas de repouso, e finalmente desagua na baía: chegámos à praia!

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Frente marítima, Margate Corbis

Olhei para a “praia” e por pouco não se me rebentaram os prantos. “Horroroso” não começa a descrever o que aquilo era. Mas também não sei qual era a novidade: as “praias” são quase todas deste género nesta terra. 

Isto não é do conhecimento geral português e evita-se falar disso nos guias turísticos, mas eis os factos crus e nus: a costa inglesa resulta da combinação inglória de uma orografia achatadíssima com uma das maiores amplitudes de maré do mundo. A média mundial de diferença vertical entre as marés ronda um metro, em Portugal chega aos três. Em Inglaterra uma amplitude vertical de dez metros não é invulgar e, para agravar as coisas, o “fundo do mar” não se afunda com grandes pressas, portanto isto traduz-se em diferenças horizontais de maré de um quilómetro, frequentemente muito mais. O resultado é que quando a maré não está cheia e na sua plenitude, a “praia” torna-se um mudflat (uma planície de lama): o mar está lá muito, muito ao longe, nem se vê, e onde na maré alta estava água, está agora um lamaçal povoado por vermes enrolados, um pântano de esterco, chama-lhe praia se quiseres ser parvo como eles. 

Debaixo de semelhantes circunstâncias, para permitir ao bife um “banho de mar” é necessário o engenho humano. E, neste sentido, tem Margate um grande tanque junto à linha da maré-alta, um quadrado com uns cem metros de largura, que na maré cheia está submerso e portanto retém a água do mar quando este se vai embora. O tanque não terá sequer meio metro de fundura, que é o máximo que a praia vai abaixo nestes cem metros, e é lá dentro que o bife chapinha em águas imundas, é isto ir à praia nesta terra, não admira as figuras tristes que eles fazem no Algarve, imaginem o que é ter sido criado nesta merda. 

Ainda fui molhar os pés naquela selha a fazer as vezes de oceano, mas o fundo era um lodaçal, a água preta, vim-me embora. Na nesga de areia que precede o mudflat estavam acomodadas umas quantas famílias de ar feliz, rodeadas de baldes e pás, blindadas por barricadas de lonas, para que servirá aquilo. Fomo-nos também instalar ali, se é bom para eles é bom para nós, com um livro na mão, ao menos lê-se. Não tinha passado sequer meia hora levanta-se um grande furacão, Ok, já percebi para que são as lonas que eles trazem para a praia, parecia que nos estavam a assear com uma máquina de limpeza a jacto de areia, vamo-nos embora que já chega, vamos tomar um café.

As avenidas junto ao mar não ajudam. Com nomes como Royal Esplanade ou Queen’s Promenade, poderia esperar-se sofisticação, senhoras de sombrinhas abertas a passear caniches. Em vez disso, está tudo cheio de lixo e vomitado, restos de fish ‘n chips e da tarde passada no pub, eu com uma praia daquelas também dava em alcoólico, antes afogar-me no próprio gregório do que naquele lamaçal marítimo. Os cafés exalam cheiros fétidos e vendem as chazadas que eles tanto estimam, mas ao menos estamos abrigados do vento, ficamos aqui um bocadinho.

No meio disto tudo ainda não nos tínhamos dado ao trabalho de procurar onde pernoitar, isto deve estar às moscas. Pegamos no carro e paramos no primeiro hotel, eu desato logo a torcer o nariz, a carpete olha eu tinha nojo de limpar o cu àquilo, a minha companheira de viagem a revirar os olhos, estes gajos portugueses são uns maricas, mas eu a dar-lhe, que se calhar neste hotel só servem cerveja e amendoins, e eu quero é lapas na chapa e vinho verde, estamos nisto quando ela dá pela tabuleta, “NO VACANCY”, acabou-se a discussão.

Aliviado, continuamos rua abaixo, mas a história repete-se, uma vez, duas vezes e etc. O facto de a terra ser medonha não impedia que todos os hotéis e pensões rascas estivessem lotadíssimos, um “NO VACANCY ó vai-te embora” pendurado em cada porta. Pergunto a um recepcionista se havia festa na terra, mas não:
— Isto é normal. Há quem reserve quarto com meses de antecedência. 
Impressionante! Ali estávamos numa estância balnear que dava asco, e os ingleses a fazerem bicha para lá ir passar o fim-de-semana. Tendo em conta o vendaval que se pusera, ainda pergunto ao senhor:
— E o que é que as pessoas fazem?
— Ora... bebem.

Finalmente vamos dar com um hotel enorme, cavernoso, num promontório à saída da terra, o qual se vê que em tempos terá dado pousada à rainha Vitória mas desde então não fora limpo. São cinco andares estendendo-se pela costa, um super-hotel do século XIX. Está a cair aos bocados mas tem a vantagem singular de não comunicar explicitamente NO VACANCY. À entrada está um senhor muito britânico (como a minha mãe o definiria, este é de facto um gentleman), que passa um quarto de hora a estudar uma lista de reservas e a contemplar o chaveiro, antes de revelar que infelizmente só tem um minúsculo cubículo, e virado para a estrada, peço desculpa.
But we don’t charge for the tea. Just help yourselves

O homem até estava a ser simpático, percebi que ali havia gato, mas era óbvio que o senhor tivera pena de nós e estava a tentar remediar uma situação melindrosa, fosse ela qual fosse. Aceitámos a oferta e seja o que Deus quiser.

Saímos de imediato para a noite margueitense em busca de sustento, a fome é negra, sem esperar grandes iguarias. Os restaurantes são asquerosos, servem peixe frito, com batatas fritas, com cebolas fritas, tudo frito, comida tão oleosa que dá vontade de a passar por detergente antes de a meter na boca, perdão, aquilo não é gordura, é banha artificial, gordurreia de plástico, e então a carne ainda é pior — empadões, salsichas, sebos e óleos vários: eis os untos com que se alimentam os bifes!

Numa ruela longe da avenida marginal encontramos finalmente um estabelecimento que não daria “ânsias” ao Pita da taberna lá em Évora (onde havia serradura no chão, e era a sério) e a comida parece razoável. Mas vejo que só há um prato de peixe, e é congelado, admite honestamente o empregado. Relembrando o porto fora da terra (um paredão com dois barquitos tipo iate enferrujados) pergunto ao empregado, que tem cara de ser bom rapaz:
— Então e os pescadores?
Ele olha para mim com um ar escandalizado, como se tivesse perguntado se a prima dele se prostituía.
— Os quê? 
Sim, filho, pelo menos na maré alta o mar está mesmo ali ao fim da rua, isto na minha terra quer dizer traineiras no mar, redes a secar na praia, o peixinho a grelhar na brasa, sabes o que isso é?
— Não, aqui já há muito tempo que ninguém pesca. 
E com ar de quem se acha realmente muito evoluído, acrescenta:
— Quem pôde foi trabalhar para os bancos em Londres e está rico. O resto está tudo no subsídio de desemprego.

Porra que isto ainda é pior do que o Algarve, penso eu. Mas claro que compreendo a atitude. Num país onde se fazem fortunas a comprar e a vender dinheiro, tipo negócios da Dona Branca, e onde se é condecorado pela rainha por essas pantomineirices, ir ganhar o pão no alto mar soa de facto a atestado de estupidez. É compreensível, e quem não acha isto, por via de regra, é hipócrita. 

Uma das coisas que mais me irritam nos roteiros turísticos ingleses, da laia dos Rough Guide, é a glorificação da pobreza exótica e rústica, da miséria dos outros. Praias na Gâmbia? Não são grande coisa para nadar, mas é tão bonito ver os locals a puxar os barcos praia acima, sem assistência de tractores, e vendem o peixinho tão barato... Aldeias de mástique na Grécia? Valem a pena, apesar das muitas lojas turísticas, e porquê? Porque os nativos ainda trabalham a terra com burros e outros métodos tradicionais, não vês como andam tisnados do sol... Mas vais lá tu dar o corpo ao manifesto, meu cabrão?, claro que não, olha agora a ideia, não vêem como estou tão ocupado a escrever um Rough Guide!?

Há anos que os Rough Guide se andam a carpir por a Nazaré ter perdido o seu carácter tradicional, se calhar a Secretaria de Estado do Turismo devia mandar demolir o porto que lá foi construído, para os pescadores se afogarem no Inverno e a gritaria das varinas recém-viúvas dar mais colorido à terra, tudo para inglês ver, não é?

Este apreciar do pitoresco miserável e primitivo à custa da pobreza alheia, e sem prejuízo do conforto próprio, é uma coisa profundamente inglesa. O escritor Hanif Kureishi disse uma vez acerca das gentes abastadas que compram casarões nos bairros pobres londrinos que o fazem porque “querem ter uma casa com vista para os pretos”.

Depois de jantar ainda passámos por um pub e voltámos ao hotel com o proverbial grão na asa. E é então que reparo que todas as tabuletas e letreiros, nos corredores, quarto, casa de banho, estão em inglês e em cirílico (e não é russo). Quando vou a acender uma luz vejo que há uma grande profusão de interruptores, alguns acendem luzes vermelhas, por baixo alguém escreveu “fucklights”. Está tudo explicado, vai ser uma bela noite, estou à espera de grande algazarra, sabes de quê, mas surpreendentemente ouve-se silêncio. 

Começo a perceber as dificuldades do gentleman recepcionista com a selecção do nosso quarto: devemos estar na ala da gente fina, querendo com isto dizer que a minha companheira de viagem não tem sífilis. O sono afinal será possível. 
No dia seguinte, depois de sobrevivermos ao pequeno-almoço não o comendo, concordamos que é altura de seguir viagem, foi tudo tão mau que achámos graça, ah, ah, ah, boa piada, mas já chega, há limites. À saída ainda avento um bem-disposto:
See you next time!
A senhora que está agora na recepção por pouco não cai para trás com a surpresa. A minha companheira de viagem desata a tossir e a espirrar para encobrir o riso. 

Decidimos ir a Sandwich, que fica próximo, porque gostámos do nome da terra. Na noite anterior tinham-nos contado no pub, conversa de bêbados, que a palavra “sandes” ou “sandwich”, vinha de facto dali, até então as pessoas pediam pão com queijo ou com fiambre ou fosse lá com o que fosse, mas certo dia um tal John Montagu, quarto conde de Sandwich e FRS (Fellow of the Royal Society) ordenou ao mordomo que lhe trouxesse duas fatias de pão com carne de permeio, o contexto é controverso, o certo é que o homem não queria perder tempo com a alimentação, nem engordurar os dedos com a carne, uns dizem que era por mor da jogatina, uma devassidão, mas o biógrafo oficial diz que não, que era pela dedicação que o senhor tinha à Marinha, e também às artes e à política, um escravo do dever, passou-se isto em mil setecentos e troca o passo, o que é certo e sabido é que o conde ou “Earl” ou lá o que ele era não estava sozinho quando isto sucedeu, e levantou invejas, os outros também queriam, começaram a pedir ao mordomo “o mesmo que Sandwich”, a coisa pegou, assim se inventou uma palavra. 

Quando chegamos à terriola percebemos que o poder feudal, ainda que ligeiramente enfraquecido, está bem vivo em Inglaterra. A maior parte das terras são pertença da família do tal conde, ao menos aqui a riqueza é da antiga, não é a Dona Branca, venha o Diabo e escolha. Mal enfiamos pela estrada para a praia damos com uma cancela a barrar-nos o caminho. De uma guarita sai um porteiro de outros tempos:
— Podem passar, mas são 10 libras.
Olhamos um para o outro, eu e a minha companheira de viagem, e ele continua:
— Mas querem pagar 10 libras para quê? É só o mar...

Percebemos que a questão não é dinheiro, que evidentemente ali não falta, mas sim mandar as pessoas embora. Ai é? Então toma lá uma nota e mete-a “onde o Sol não brilha”, como eles dizem. O porteiro, silencioso, recolhe delicadamente o dinheiro entre dois dígitos, passa-me um recibo com uma caneta de tinta permanente lilás, levanta a cancela e acena-me para passar.
— Mas não há lojas nem “amenidades”. 
Uma sorte que o direito da pernada tenha sido abolido.   

Ao menos está sol, aproveita, muito embora o vendaval não abdique. A praia consiste na planície de lama habitual, mas sem sequer ter a bênção de uma pouca de areia na linha da maré alta. Pelo contrário, é só pedregulhos. Ao fundo vêem-se paquetes a atravessar o canal da Mancha, ainda pensei em ir à água, mas está lá muito, muito ao fundo e parece cocozinho de bebé, deixa-me indisposto. 

Um passeio pelo lamaçal e já vamos com sorte... mas temos de ter cuidado que se a maré lhe dá para encher é mais rápida do que um cavalo, mais uma informação recolhida no pub ontem à noite, trela de alcoólatras, dizem que tem morrido gente assim.

Na crista da praia, sobre as pedras, avistamos um homem de cabelos grisalhos a manobrar um papagaio gigantesco, um “sports kite” diz-se assim. Mas este papagaio não se segura por uma guita só, são muitos os arreios da besta, múltiplos os fios de náilon atados em arnês ao corpo do homem, e ainda assim é óbvio o esforço que o desgraçado vai fazendo, que o ciclone não é para brincadeiras. O homem puxa, inclinando-se todo para trás para empregar o peso inteiro do corpo enquanto vai manipulando os vários fios, aos quais a besta reage, obediente, às vezes saltita pelo ar mas parece que está tudo sob controle, muita é a perícia, comentamos eu e a minha companheira de viagem, cheios de apreciação, mas de repente uma rabanada mais brusca não perdoa, pega no papagaio, nas guitas e no homem, e vai tudo pelos ares a voar, a par e par com as gaivotas, ele ainda grita quem me acode, mas a rajada sem consideração nenhuma atira com o infeliz para os calhaus, as ventas a servirem-lhe de trem de aterragem, e não te queixes que ao menos não acabaste em França, primeira travessia do canal da Mancha a papagaio.
— Ouch — grita a minha companheira de viagem, preocupada.
— Vamos ajudá-lo, se calhar magoou-se...
Mas o homem levanta-se, sacode-se, assoa-se dos cascalhos que lhe entraram pelas narinas, parece que está a sangrar mas isso não o amofina, e retoma as operações de imediato, recompondo as peles ao animalejo, retomando-lhe as rédeas. O papagaio levanta voo novamente e o homem prossegue a sua tarde de lazer. Vê-se que sorri, e até parece feliz. 
“Porra”, penso eu com uma careta, “e isto é o hobby dele”. 

Olho em volta, digerindo aquelas horrendas cercanias, e de repente uma imagem assoma-se-me à memória e traz lágrimas aos meus olhos. Pode ser parolo ou foleiro ou lá o que a gente lhe chamava, pode até ser ridiculamente sentimental (e será assim que os emigrantes portugueses acabam como acabam, emocionalmente destrambelhados com as saudades da terra pátria, alvo da chacota geral) mas, de olhos húmidos, o que penso é apenas isto:
“Minha rica Caparica!” e depois querem que os portugueses não sejam dados à nostalgia.

Foto
Corbis

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