Depois há aquela palavra: “moral”

O animalzinho que mata por fome, medo ou território será mais ou menos “moral” que o humano que mata porque se sente desonrado (seja pela mulher que lhe pôs os palitos ou pela sociedade que o condenou a uma vida de fome)?

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Reuters

Um dia perguntaram a William Faulkner porque é que nos seus livros quase toda a violência era produzida por homens entre os 20 e os 35. “Porque são eles que a cometem”, foi a resposta. Não consta que Faulkner tivesse tomos de criminologia sobre a mesinha de cabeceira, e no entanto estava certo: os dados recolhidos por matemáticos, estatísticos e demais estudiosos do crime realçam que a chamada violência “one on one” (a morte violenta não produzida por guerras) é, desde a Idade Média, responsabilidade de homens entre os 20 e 30 anos — às mulheres cabem 10% da violência.

Este tipo de violência tem diminuído com os séculos — custa a crer, pelo menos a quem anda de metro, mas estamos mais civilizados. Serão os registos de criminalidade dos antigos são fiáveis? Sim: há muito que o Ocidente aponta cada morte e suas razões. E os mencionados estudos calculam sempre a violência de outrora por alto. Não há erros nestas contas, por mais estranho que isso pareça a quem vê demasiada televisão.

Apesar das evidências, os humanos insistem na ideia de que estamos mais violentos e de que mais valia lidar com animaizinhos do que com humanos. É este o cerne de um texto de Luís Valente Rosa publicado na revista “Visão”, cujo sub-título é “Há mais humanidade num chimpanzé ou em quem mata os seus por razões morais?” e inclui esta pérola: “a diferença de ADN que temos em relação aos bonobos é de apenas 1,6%. Os restantes 98,4% são comuns”.

A confusão que vai na cabeça de Valente Rosa — e de tantos humanos — explica-se, certamente, com um défice de conhecimento científico. Mais que os 98,4% de ADN comuns, o que interessa é como os genes se combinam: aqueles 1,6% permitem uma diferença abissal entre as espécies. É verdade que em alguns sentidos estamos próximos dos bonobos — mas os chimpanzés, por exemplo, são mais promíscuos e violentos.

Depois há aquela palavra: “moral”. Ela só serve para (vilipendiar) humanos ou podemos usá-la com os animaizinhos? Há espécies de pássaros em que por cada 10 elementos um fica de atalaia à cata de predadores e avisa os companheiros que fogem em bando; e um que foge sozinho. O altruísta é quase sempre morto; o que escolhe outra rota salva-se, porque os predadores seguem a turba. E no entanto é tão necessário ter membros altruístas como egoístas: sem o altruísta uma grande parte da população seria destruída; sem o egoísta era muito possível que nenhum elemento escapasse ao predador. Não há fórmulas mágicas: a percentagem de elementos altruístas, egoístas e (por assim dizer) “comuns” necessários a estas espécies para sobreviverem varia consoante as condições, mas pode-se concluir que as percentagens de estritamente altruístas e estritamente egoístas devem ser “marginais”. Podemos chamar ao comportamento do altruísta “moral”?

O animalzinho que mata por fome, medo ou território será mais ou menos “moral” que o humano que mata porque se sente desonrado (seja pela mulher que lhe pôs os palitos ou pela sociedade que o condenou a uma vida de fome)?

Valente Rosa, pouco preocupado com estas questões, afirma que o “seu” ser humano “defende […] a liberdade e a justiça” e “procura a superação de si”. Tenho uma proposta, caro Valente Rosa: vá viver um mês para o meio de um bando de chimpanzés (ou uma matilha de lobos da serra) e depois, se sobreviver à superação deles, traga-nos os belíssimos discursos sobre liberdade e justiça que ouviu aos papagaios (ou aos tubarões brancos).

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