Resgatados

Uma igreja que vai receber um Museu do Dinheiro, uma muralha escondida durante séculos, moedas do tempo de D. Dinis. Histórias da Baixa de Lisboa.

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São dois pequenos botões de punho brancos com duas caravelas. São pequenos, mas destacam-se contra o fundo negro. De repente, a imagem deles dança à nossa frente, podemos vê-los mais próximos, e depois de todos os ângulos, até voltarem a ser engolidos pelo negro.

Os botões são reais, mas ao lado dança uma imagem filmada para nos permitir vê-los melhor. E é assim com as outras peças, pedaços de cerâmica que terão pertencido a uma candeia, um almofariz, uma ânfora, que na imagem vemos reconstituídas, uma peça de um jogo que virá de algures entre o século X e o século XIII, o cabo de uma faca. E depois, subitamente, um crânio de equídeo datado dos séculos I a IV, tendo ao lado a imagem de uma bela cabeça de cavalo.

Todos estes objectos viveram adormecidos debaixo de terra e de pedras durante muitos séculos. Hoje, resgatados a um esquecimento que parecia definitivo, podem ser vistos no Núcleo de Interpretação da Muralha de D. Dinis, dentro do futuro Museu do Dinheiro, na antiga Igreja de São Julião.

A própria igreja, ao lado da Praça do Município, terá um dia sido dada como perdida. Tinha a fachada intacta, mas o interior estava transformado em garagem — os carros entravam pela porta principal e estacionavam na nave da igreja. No chão, debaixo de tudo isto, os botões de punho com caravelas aguardavam, silenciosos, que os homens recuperassem algum bom senso (o que, como se sabe, nunca é garantido).

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Núcleo de Interpretação da Muralha de D. Dinis Banco de Portugal — Largo de S. Julião, Lisboa. Entrada gratuita. Horários: das 10h às 18h, terça a sábado (de 17 Maio a 4 de Setembro)

Mas finalmente aconteceu. Foi tomada a decisão de recuperar a Igreja de São Julião, que, mesmo antes de tudo isto, já tinha tido uma vida atribulada: no século XVII estava localizada no cruzamento das ruas de São Julião com a Rua Augusta, mas depois da destruição provocada pelo terramoto de 1755 foi reconstruída no Largo de São Julião.

Ainda sofreu um incêndio que lhe destruiu o interior, e só a meio do século XIX encontrou alguma paz. Na década de 30 do século XX tornou-se propriedade do Banco de Portugal e iniciou uma inusitada relação com o dinheiro (nela foram instaladas caixas-fortes e funcionou como centro de distribuição de numerário) que lhe destruiu algumas paredes.

Foram as recentes obras de restauro — projecto dos arquitectos Gonçalo Byrne e Falcão de Campos — que trouxeram à superfície todo o passado enterrado. A descoberta mais espectacular foi a de um troço da muralha que D. Dinis mandou erguer junto ao Tejo, para proteger Lisboa de ataques.

É isso que, depois de atravessarmos o corpo principal da igreja, descemos para ver. A muralha tem milhares de cicatrizes que só olhos experientes de arqueólogos conseguem decifrar — sinais de fogo aqui, ali uma entrada (supostamente para o Paço Real da Ribeira, do século XVI, no qual foi posteriormente integrada), um poço (esse fácil de identificar), um revestimento cerâmico.

O curto passeio ao longo da muralha é acompanhado por legendas. Mas para nos transportar no tempo bastaria o som. Percorremos aqueles poucos metros ouvindo as águas do rio e, ao longe, conversas, vozes de pessoas, a azáfama que ali existiria no século XIII. Mais tarde, com a construção da Cerca Fernandina, a muralha foi sendo abandonada e esquecida, e depois do terramoto o que restava ficou quase completamente soterrado.

Quando, a partir de 2010, começaram as escavações, foram encontrados mais de 100 mil fragmentos de cerâmica, e muitas centenas de ossos, de corpos que ali tinham sido enterrados. Foram encontradas também moedas, dinheiros do século XIII. Não foi, afinal, o reinado de D. Dinis uma época de grandes transacções comerciais?

Podemos até descobrir neste subsolo da Igreja de S. Julião qual era o valor do trabalho no século XIII e ficar a saber que o abegão (guardador de gado) ganhava 5 morabitinos velhos, ou seja, 1620 dinheiros, exactamente o mesmo que o conhecedor de porcos, mas este tinha ainda direito a vários animais e a dois pares de sapatos consertados por duas vezes.

Afinal, a história do dinheiro esteve sempre aqui. Mesmo quando os carros ocupavam o espaço outrora sagrado da igreja e as caixas-fortes rasgavam à força as suas paredes, havia velhas moedas lá em baixo, no escuro da terra, ao lado de uns botões de punho de alguém com paixão pela navegação, à espera de um dia voltarem à luz para contar a história de um país e da sua relação com o dinheiro.     

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