Desculpa, filho, mas não resisti ao egoísmo de te amar

Nunca imaginamos que os nossos filhos poderão vir a ser delinquentes ou ditadores. Aceito este viés de argumentação e imagino-os, esperançosamente, bons; de uma bondade imponderável e reconfortante. Feliz

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Dan/Flickr

Sarcástico, o comentário que recebi há tempos fez-me pensar: escreveste sobre quê, empatia com crianças mortas na Síria? Isso interessa muito pouco; devias era escrever sobre o que custa ser pai num país desenvolvido. Isso sim, agora a Síria. E voltei, assim, a olhar para o umbigo.

Assim, revivo a luta diária para conduzir o quotidiano desafogado que felizmente mantenho. Ser pai é lutar sempre, para sair de casa, para alimentar a prole, para manter a calma, para educar. É a sensação de cansaço que combatemos para dar um pouco mais de brincadeira nas já parcas horas que passamos com os nossos filhos, porque brincar é a actividade mais séria que eles fazem (ou deviam fazer). Mas, de repente, arrepio. O futuro?

Nunca imaginamos que os nossos filhos poderão vir a ser delinquentes ou ditadores. Aceito este viés de argumentação e imagino-os, esperançosamente, bons; de uma bondade imponderável e reconfortante. Feliz.

Mas que referência serei eu para eles quando, daqui a dez, quinze ou vinte anos, tiverem já construído uma consciência social e política? Temo; medo de trintão, talvez.

Imagino o meu filho, integrado na sociedade, consciente das promessas de mundos melhores e das concorrentes faltas de humanismo e solidariedade que assolam a bola de pedra e fogo em que todos vivemos. Imagino-o empático e a perguntar-me: pai, o que fizeste para melhorar o mundo?

E eu estremeço; sim, o que fizeste?

Seguiste os teus ideais activistas de protecção dos mais desprotegidos, e partiste em campanhas de voluntariado para o Médio Oriente ou África? Acaso passaste noites em frente a embaixadas a exigir a libertação de presos políticos e vítimas de tortura? Porventura tomaste para ti uma tarefa pública de actividade política? Procuraste, ao menos, ser eleito para ajudar a mudar o teu país, a tua cidade, o teu bairro? Não; que fizeste, então?

E eu, do alto da minha treinada condescendência paternal escondendo humilhação, direi.

Sabes, tudo isso me passou pela cabeça. Sempre votei e, algures no tempo, estive bem perto de tentar seguir uma carreira política. Noutros momentos, tive até vontades incontroláveis de actuar à margem da lei para combater os nossos líderes que agiam, eles próprios, também à margem da lei. Por mim, e pela minha família, valeria a pena.

Mas há eventos que nos moldam e que recentram o nosso mundo. Dois desses eventos, foste tu e a tua irmã. E o meu mundo ficou muito mais pequenino, mais preenchido, mais concentrado. Deixei de ver ao longe; vejo-vos aos dois ao perto, perto de mim. E nada mais pude fazer senão cuidar que assim continuássemos; perto.

Dirás que talvez preferisses um pai activista ausente a um comodista ao teu lado; talvez mais um pai aprisionado, mas revolto, que um aconchego cobarde. Talvez; mas por agora, não consigo sentir isso, nem sentir que o sintas. O altruísmo não é suficiente para me deixar afastar-te, nem eu afastar-me de ti. Queres-me como eu te quero: perto, seguro.

E por isso o que faço é por ti, mas contigo. Espero, na altura da tua pergunta, poder dizer-te que fiz muito mais do que isto; mas se só isto for, dar-me-ei por satisfeito.

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