A guerra dos monstros

Um blockbuster com mais cabeça do que a maioria, fiel à dimensão metafórica da criação original - mas que não sabe o que fazer com as suas personagens.

Faz agora 60 anos, um pequeno filme de monstros japonês dava o pontapé de saída para uma das personagens de maior longevidade do cinema fantástico - e desde o princípio que Gojira, aliás Godzilla, aliás O Monstro do Oceano Pacífico (para lhe dar o título que esse primeiro filme teve em Portugal), tem resistido a quaisquer tentativas de “ocidentalização” (foi, de resto, por aí que a esquecível Godzilla, de Roland Emmerich, em 1998, criou tanto anti-corpo. A primeira prova de inteligência desta nova tentativa é a de se instalar na sequência directa do original de 1954, regressando à origem oriental do monstro (tudo começa no Japão e nas Filipinas) e ao seu simbolismo caucionário.


Entregue ao inglês Gareth Edwards, cuja estreia notada com Monsters/Zona Interdita (2010) situava a reverência pelos filmes de monstros clássicos num mundo reconhecivelmente quotidiano, Godzilla ejecta por completo o humor piadético que parece ser de rigor no moderno blockbuster para perseguir a seriedade da dimensão metafórica deste monstro de uma outra era, originalmente acordado pelo poder nuclear desencadeado pelo homem. Quem esperar de Godzilla a proverbial porrada de matar bicho entre monstros gigantes não sairá desiludido, mas será certamente surpreendido pelo subtexto apocalíptico de uma civilização tecnológica confrontada com poderes telúricos contra os quais não tem defesa - estamos longe da série B popular da Batalha do Pacífico de Guillermo del Toro, por exemplo. O Godzilla de Edwards responde às instabilidades contemporâneas, evoca ao mesmo tempo Fukushima e o tsunami de 2004 no Oceano Índico, as alterações climatéricas e os acidentes industriais com uma naturalidade quase ostensiva. No momento em que o Cosmos de Neil de Grasse Tyson nos fala do nosso lugar no universo, o filme questiona como pode a natureza reagir à arrogância do ser humano, e fá-lo de modo muito menos descartável do que é costume nos “filmes pipoca”.

Nos seus melhores momentos, Godzilla recria o terror existencial, quase incompreensível, que Spielberg aperfeiçoou na primeira meia-hora da sua Guerra dos Mundos. Fá-lo, sempre, do ponto de vista das personagens humanas - que, infelizmente, têm uma total ausência de espessura. O “herói” Aaron Taylor-Johnson é perfeitamente letárgico, é criminoso ter Elizabeth Olsen, Sally Hawkins e Juliette Binoche sem lhes dar nada para fazer. É por aí que esta Godzilla resolutamente “à moda antiga” (mais Spielberg via Abrams do que Joss Whedon) perde pontos - por aí e por um 3D desnecessário. Mas a força e a grandiosidade das imagens que Gareth Edwards cria e a inteligente gestão do ritmo do filme (recusando a mera demonstração tecnológica a torto e a direito) chegam para confirmar que há mais cabeça em Godzilla do que na actual linha de montagem de super-heróis que parece ter sufocado o cinema mainstream americano.

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