A visibilidade e a invisibilidade de um movimento intuitivo

Anne Teresa de Keersmaeker faz as honras de pré-abertura do Alkantara Festival, esta terça-feira e amanhã na Fundação Calouste Gulbenkian. Partita 2, dançada com Boris Charmatz, é o encontro da carne com o desejo de fuga.

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Partira 2, estreada em Bruxelas, chega agora a Lisboa à Gulbenkian e ao Festival Alkantara Anne van Aerschot

Quando, no final da noite de estreia de Partita 2 em Bruxelas, faz agora um ano, Boris Charmatz disse a Anne Teresa de Keersmaeker que a coreógrafa podia regressar a Fase e começar tudo outra vez, ela riu-se. Mas faz sentido.

Quem tiver visto ou revisto, em 2012, no Centro Cultural de Belém, a primeira peça de De Keersmaeker, criada em 1982, e esta terça ou quarta-feira for ver Partita 2 ao Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, encontrará os mesmos princípios de construção sustentados numa presença em palco que se despe de convenções, que ensaia o risco na obstinação, que experimenta o improviso na forma.

O que Boris Charmatz, que dança Partita 2 com De Keersmaeker, lhe disse – que “deveria ser possível voltar ao início” – é o desenho de uma linha que traça 30 anos de criação e que De Keersmaeker resumiu numa só ideia, tão simples como entranhadamente complexa: “My walking is my dancing [Como danço é como caminho].” Afinal, neste regresso “ao que pareceu esquecido durante 20 ou 30 anos”, De Keersmaker volta a mostrar como do concreto se faz imaterial – as linhas, movimentos simples, andar, um círculo –, algo que podemos ver em muitas das suas peças, até mesmo em peças mais barrocas, como Mozart Concert Arias (1993, que este mês foi integrada no repertório da Companhia Nacional de Bailado). 

Disse Charmatz que a coregrafia revela, agora tal como há 30 anos, que o discurso de Anne Teresa de Keersmaeker assenta numa “concepção arquitectónica e espacial única, sem desvios, sem que para cada gesto se construa um significado”.

De Fase a Partita 2 vai um percurso imenso e intenso, variado e contrastante, aplicado na recusa da ornamentação do movimento e na artificialização do corpo do intérprete. Em palco, dois corpos (mais um, o da violinista Amandine Beyer, numa dança própria com o violino e, por vezes, marcando o espaço dos outros dois corpos) que experimentam modos de superação através de uma aproximação à exaustão pela repetição. Mas, vistos de fora, esses dois corpos (e o próprio espaço, iluminado por Michel François, artista visual que lança sobre a escuridão a luz de um projector que parece, também ele, dançar) trabalham a partir de uma lógica que é mais orgânica do que o maniqueísmo que a decomposição do movimento criada pela expectativa pode sugerir.

No mesmo palco, aquilo que Charmatz define como a inteligência dela e De Keersmaeker considera ser a disponibilidade dele originaram, escrevia o PÚBLICO na altura da estreia, “o mais perfeito exemplo do encontro entre a sexualidade feita metáfora dele e o movimento como hipérbole do corpo que ela tem perseguido”, naquilo que “às vezes parece um duelo, outras vezes um gesto que se completa”. Mas nem sempre essa ideia de completude e de diálogo com a obra de um e de outro parecerá evidente.

A ideia de trabalharem juntos não foi imediata. A carne dele e a evanescência dela não são necessária ou imediatamente compatíveis. Foi preciso esperar até 2011, quando Charmatz, então artista associado do Festival de Avignon, terminava as apresentações de Enfant (que esteve na Culturgest nesse ano) na Cour d’Honneur do Palácio dos Papas e a equipa de De Keersmaeker entrava para ensaiar Cesena (que Guimarães 2012 e o Alkantara Festival mostraram em 2012), peça que começava às cinco da madrugada.

Essa espécie de passagem de testemunho intensificou uma convivência formal que decorria de frequentarem os mesmos sítios havia já vários anos. Mas enquanto, recentemente, a coreógrafa belga tem ensaiado, por entre peças de maior fôlego, momentos de quase reclusão – Keeping Still (2008, com Ann Veronica Janssens); 3Abschied (2010,com Jérôme Bel, esteve na Gulbenkian em 2012) – em que experimenta outros modos de reequilíbrio entre espaço, tempo e corpo, Charmatz tem criado fantasmagorias – Régi (2005, com Raimund Hoghe); La Danseuse Malade (2008, com Jeanne Balibar, esteve na Culturgest em 2009) – onde o corpo praticamente desaparece. Entre o desejo de visibilidade dela e o de invisibilidade dele, surge então Partita 2.

Os corpos dos dois intérpretes agem sobre a partitura musical de Bach, uma Partita em D menor para violino solo (BWV 1004) feita para ser dançada. Mas o que De Keersmaeker e Charmatz fazem em palco é de outra ordem. Movimento sim, mas, sobretudo, evasão. Construção sim, mas, sobretudo, reconhecimento de um espaço. Presença sim, mas, sobretudo, um modo de intervenção que pede uma consciência do corpo, do espaço e do discurso que em tempos de aceleração da imagem – e do próprio tempo – surge quase como anacrónica.

“Para mim, a estrutura está em Bach, mas a sua dimensão transcendental está escrita na carne”, escreveu a coreógrafa para o programa. Assim, no encontro entre uma carne em fuga e um movimento em ascese, Partita 2 que é, efectivamente, de uma simplicidade aparente, torna-se coreograficamente desarmante. É um truque de ilusão sugerido por corpos que, vestidos de forma casual (ele de fato de treino, ela naqueles vestidos simples pretos e estreitos que já vimos noutras peças), se disputam e ultrapassam, como se competissem no desenho de uma coreografia que hesita entre a eficácia e o virtuosismo. É uma partilha do que têm em comum: “A dança que dança”, explicava a coreógrafa, para falar de um movimento atento a tudo o que a rodeia. Um movimento que começa na respiração e se prolonga, sem fim, na percepção e naquilo que se possa, individualmente, intuir. Afinal, o mesmo que se procurava na desconstrução da repetição que estava já em Fase, a partir da música de Steve Reich.

Partita 2 apresenta-se terça e quarta-feira  no ciclo Teatro/Música, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian (co-produtora da peça) e pelo Teatro Maria Matos, e em pré-abertura do Alkanta Festival, que começa oficialmente no próximo dia 21. É aí que De Keersmaeker, que foi Artista da Cidade de Lisboa em 2012, vai encontrar Tim Etchells, o convidado deste ano, ao lado de outros regressos, como os de Toshiki Okada, Lia Rodrigues, Faustin Linyekula, o colectivo Berlin ou a dupla Halory Goerger e Antoine Defoort.

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