O vendedor de chá que vai ser primeiro-ministro da Índia

As sondagens dão uma vitória antecipada ao líder do partido nacionalista hindu. Quem é este homem que os analistas vêem como a figura mais fracturante do país?

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Imran Masood, candidato do Partido do Congresso ao Parlamento indiano, foi preso há duas semanas. Há meses, e em público, ameaçara cortar Narendra Modi “em pedaços”. À frente do juiz que o mandou agora para a prisão 14 dias, insistiu em não pedir desculpa, e em frente aos jornalistas declarou não lamentar ou sentir remorsos por desejar tanto mal ao homem que as sondagens dizem ir ser o próximo primeiro-ministro da Índia.

Seis meses depois, a frase de Masood ecoou no Uttar Pradesh, o seu estado, e na nação, arrastando para a polémica o candidato do Congresso à chefia do Governo, Rahul Gandhi, que cancelou um comício marcado para uma grande cidade do importante estado indiano.

Não foi o primeiro comício que o herdeiro de Jawaharlal Nehru, o primeiro primeiro-ministro da Índia independente, e de Indira Gandhi, desmarcou por causa de coisas que andam a dizer os homens do Congresso. E à medida que as eleições se aproximavam — começaram a 7 de Abril e terminam a 12 de Maio —, foram soltando frases mais radicais e prejudiciais. Dias antes da votação, uma outra destacada figura do partido, Shared Pawar, que é ministro dos Sindicatos, disse aos apoiantes para votarem duas vezes, aproveitando que, nestas eleições, as mesas de voto em cada zona não estão todas abertas no mesmo dia. Num dia, votam na urna que estiver aberta — explicou Pawar num comício em Mumbai —, no outro, vão a outra.

É sintomático do estado a que chegou o Partido do Congresso que seja por aí que se comece um texto sobre Narendra Modi. Modi é o candidato de 63 anos do Bharatiya Janata Party (BJP), o partido nacionalista hindu, de centro-direita. As sondagens e as percepções dão-lhe a vitória nas legislativas. Rahul Gandhi, que tem 43 anos, é o vice-presidente do Congresso, de centro-esquerda, que os números e as análises dizem poder sair humilhado desta votação. De um lado, está um partido que dá uma ideia de unidade para o exterior — a campanha de Modi esteve nas páginas dos jornais da Índia, dos tablóides aos de referência. Do outro lado, há ruído — são tantas as vozes, tantas as polémicas, que Gandhi quase desapareceu.

A política do BJP “baseia-se num só homem”, disse há dias o actual primeiro-ministro, Manmohan Singh. Queria dizer que o seu partido é pluralista na ideologia e colegial nas decisões, mas o eco transformou as palavras de Singh num elogio ao adversário — à frente de um Congresso cuja desagregação se espalhou no país, o BJP é a imagem da ordem.
Numa frase, Singh resumiu como cada um dos campos avançou para uma guerra eleitoral que os analistas dizem ser a maior desde a independência da União Indiana, em 1947 — os homens do Congresso não são os homens de Rahul Gandhi, mas os homens do nacionalismo hindu são o exército de Modi.

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Mesa de voto em Jammu Mukesh Gupta/Reuters

 Uma criança reservada

Metódico, organizado, disciplinado. Assim é Narendra Modi, uma pessoa com uma só dimensão porque, como ele mesmo já explicou, não se desdobra numa vida privada e numa vida pública. Quando era uma criança pobre em Vadnagar (Gujarat), queria ser sahdu, o monge que faz o caminho da penitência e da austeridade até à iluminação. Não foi, mas é como se fosse.

Narendra Damodardas Modi nasceu na Índia das castas e a sua, a ghanci, estava nos escalões mais baixos. A biografia oficial conta que não se destacou na escola e que era uma criança muito reservada que sonhava com a meditação e a oração — um dia fugiu de casa e acabou num mosteiro nos Himalaias, onde esteve alguns meses mas não se integrou. Ao voltar à sua terra, foi vender chá aos passageiros da estação de comboios de Vadnagar. “Esta é uma eleição onde há um vendedor de chá da oposição e todos querem derrotá-lo”, disse num comício em que o tema foi a pobreza.
Quando tinha dez anos — entrava-se na tumultuosa década de 1960, de batalhas ideológicas, crise económica e convulsões sociais —, Modi começou a assistir às reuniões matinais da Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS, Organização Voluntária Nacional), o disciplinado e radical grupo de direita nacionalista hindu que estava em guerra pela preservação das tradições e da religião. Nos motins entre hindus e muçulmanos de Gujarat em 1969 — desde a separação da Índia e do Paquistão em 1947 que não tinha havido uma vaga de violência religiosa tão grande —, morreram 600 pessoas.

Junto dos radicais hindus, Modi sorveu a ideologia, aprendeu a disciplina e encontrou um modo de vida que lhe permitia viver como um monge mas ter uma vida “lá fora”.

Ao tornar-se candidato à chefia do Governo, os jornalistas indianos foram à procura da vida privada de Narendra Modi e surpreenderam-se — não existe. Quando era rapaz, e como era regra, casou com a rapariga que o pai escolheu, mas não viveu com ela. “Não tenho família, por isso não tenho ninguém a quem beneficiar”, disse num comício em que escolheu falar da corrupção que mina o Governo e parece ser endémica no Congresso. Modi, que escreve poemas nos tempos livres, explica a imprensa indiana, tem uma admiração e um amor profundos pela mãe e esforça-se para encontrar tempo para estar com ela.

Quando acabou a escola — há dúvidas sobre até que ano foi, há quem fale na universidade, mas o tema é opaco —, Modi decidiu dedicar-se a tempo inteiro ao RSS. As regras de vida e a visão da Índia dos nacionalistas hindus faziam sentido para o rapaz que se comprometeu com o activismo, o celibato e o vegetarianismo. Também não fuma nem bebe. Não sai de casa sem estar impecavelmente barbeado, penteado e vestido, e embora pareça ter gostos modestos manda fazer a roupa na loja mais cara de Gujarat, a Jade Blue. O jornal The Times of India revelou outro segredo: gosta de ter uma rede entre si e os apoiantes nos comícios porque tem medo que lhe atirem objectos, sobretudo sapatos; Modi, diz o jornal, tem pânico de ser humilhado em público.

A gestão de Modi

No RSS, o primeiro trabalho de Narendra Modi foi varrer salas. Manteve-se fiel quando o polémico grupo entrou na clandestinidade — foi proibido três vezes; em 1948, quando Mahatma Gandhi foi assassinado por um hindu radical; na Emergência, os 21 meses entre 1975 e 77 em que Indira Gandhi suspendeu a democracia e governou por decreto; em 1992, depois da destruição da mesquita de Babri, em Ayodhya. Nesse ano, uma manifestação perto da mesquita disputada por hindus e muçulmanos — e motivo de conflitos constantes, os primeiros registados datam de meados do século XIX — uma manifestação degenerou em violência e na destruição do templo; 150 mil pessoas envolveram-se nos motins que alastraram às grandes cidades como Nova Deli e Munbai. Morreram pelo menos duas mil pesosas.
Mas em 1992 já Modi se transferira para o BJP, o partido mais próximo do RSS, mas com um modelo de organização e um objectivo que serviam melhor as convicções e os novos horizontes do agora candidato. 

O partido, nascido na década de 1980 e herdeiro da formação nacionalista criada nos anos 1950 para contrariar a viragem secular do Congresso (que dominava a vida política desde a independência), aliava elementos que agradavam a Modi (e desagravadam ao RSS): uma visão social-democrata de governação (por oposição ao socialismo que Nehru legara ao Congresso), uma aposta forte na economia neoliberal e na globalização, uma política externa agressiva para impor a Índia como uma verdadeira grande potência regional. 

Se foi no RSS que Modi se começou a destacar e a revelar uma personalidade combativa e opinativa, no BJP deu nas vistas como organizador e mobilizador. 

Com uma vida recente, o BJP corria o risco de desaparecer do espectro político nacional e, dizem os biógrafos, a gestão de Modi foi crucial para a sobrevivência e coesão da formação divida em várias facções que Modi soube controlar. Em 1998, já é secretário-geral e pouco depois é nomeado secretário nacional. 
 
Narendra Modi está a um passo de chegar à liderança da sua terra natal, Gujarat, e sonha construir ali, em microcosmos, o que quer para o futuro da Índia. Não terá de esperar muito tempo. Está-se em 2001 e um violento terramoto mata 20 mil pessoas, deixa quase 200 mil feridas e destrói 400 casas. O chefe, um nacionalista hindu, é acusado de lentidão na resposta ao desastre e é afastado. Modi é o substituto — chegou à chefia do governo estadual há 12 anos e não mais de lá saiu, vencedor incontestado de todas as eleições.

Quando foi escolhido candidato a primeiro-ministro pelo partido — outra grande diferença de organização em relação ao Congresso, que não tem um candidato oficial; Rahul Gandhi é apenas o vice-presidente e director de campanha —, Modi pôs Gujarat no centro da sua campanha. É o segundo estado mais industrializado da Índia, uma das regiões economicamente mais dinâmicas.

“Se tivéssemos um Modi a dirigir o país em vez da gente que temos tido, não teríamos sofrido o que sofremos na última década e eu e toda a gente estaríamos bem melhor”, disse ao jornal britânico The Guardian um industrial e hoteleiro do estado nordestino do Punjab.

A maior economia do mundo

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Jovem no estado do Uttar Pradesh, com boné do partido BJP Anindito Mukherjee/REUTERS

Para os apoiantes, Modi é tão eficiente que há quem chame ao seu modelo de gestão Modinomics. Verdade ou mito, a economia-Modi apela a uma fatia muito importante de um eleitorado de 800 milhões de pessoas. Mais de metade do 1,2 mil milhões de indianos tem menos de 25 anos e cem milhões de pessoas vão poder votar pela primeira vez.

A eleição tem lugar num momento difícil para a economia nacional, que está no pior momento desde o arranque do seu grande crescimento na década de 1980 — há anos que não sobe acima dos 5% ao ano. A criação de empregos encolheu, os grandes projectos de construção pararam e ao olharem para o Gujarat que Modi lhes mostrou os eleitores sonharam. “Quero que a Índia se torne a maior economia do mundo. Quero que o meu país esteja no topo”, disse à Reuters Shamim, uma estudante universitária de 20 anos do Bihar, um dos estados no centro do hinduísmo e um dos mais pobres da Índia. “Se tivermos o líder certo, um líder forte, poderemos chegar lá, e esse dia pode não estar longe.”

Os apoiantes defendem a folha de serviço de Narendra Modi, que nos comícios fala ao país nos seus sucessos, em tornar toda a Índia tão dinâmica como Gujarat e tão poderosa como nunca foi — a política externa vai mudar, disse, prometendo enfrentar a China em pé de igualdade e ser forte perante o Paquistão nas disputas territoriais que sobraram da divisão (Caxemira, por exemplo).

O estado tem mantido um bom crescimento económico, acima da média nacional (6,8% contra os 4,8  nacionais). As empresas estrangeiras querem instalar-se lá — Modi baixou os impostos para as empresas e para os habitantes —, os projectos de obras públicas multiplicam-se, as exportações crescem a um ritmo também superior ao do total do país. “Modi” — diz um empresário de media de Nova Deli — “é o único homem capaz de tirar a Índia do buraco em que está”.

Nos últimos dez anos, em que a Índia foi governada pelo Congresso, a economia desacelerou, a inflação cresceu, os escândalos de corrupção empilharam-se, o país perdeu projecção na arena geopolítica. “Há uma percepção no país de que o governo liderado pelo Congresso danificou a Índia de muitas formas”, explica à Revista 2 Sumantra Bose, professor de Política Internacional Comparativa da London School of Economics. Em contraste, nem um único opositor pôde acusar o candidato nacionalista de ter beneficiado alguém, de ter enriquecido na política, de se ter desviado da ética de comportamento que apregoa nos comícios. Tudo o que podem fazer — e que tem sido pouco usado na campanha — é desmontar a retórica do sucesso do candidato.

Sim, Gujarat tem uma excelente prestação económica. Mas já tinha na década de 1980, muito antes de ser governada por Modi. Sim, Gujarat está entre as regiões que mais crescem na Índia. Mas também Mahrashtra e Haryana, só que ninguém fala deles, como refere a revista Economist. Amartya Sen, o economista indiano que ganhou um Prémio Nobel, diz mesmo que os progressos económicos e sociais do Gujarat são “pobres”.

 Os temas da campanha

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Em Mumbai, um apoiante de Modi tem uma máscara do líder do BJP no boné Indranil Mukherjee/Reuters

Para cada grupo de eleitores, Modi tem um discurso e uma mensagem. Nos últimos dez anos de governação do Congresso, a percentagem de população pobre diminuiu, a taxa de literacia subiu, há mais casas com electricidade, a rede de esgotos aumentou, a água potável chega a mais gente. Mas não chega, diz Modi. “Têm electricidade 24 horas por dia? Se os vossos filhos têm um teste podem ligar a luz para eles estudarem? As vossa mães e irmãos sentem-se seguros?”, foi perguntando Modi nas zonas mais pobres da Índia.

Gujarat também é um epicentro da violência latente entre hindus e muçulmanos. É o tema complicado da carreira de Narendra Modi e foi nele que os adversários centraram os ataques.  

Na manhã de 27 de Fevereiro de 2002, o expresso que ligava Ayodhya a Ahmedabad foi parado perto da estação de Godhra. Muitos dos passageiros eram hindus que regressavam de Ayodhya, de uma cerimónia religiosa. Não se sabe ao certo em que circunstâncias, quatro carruagens foram incendiadas e 59 pessoas morreram queimadas — 25 mulheres, nove homens, 25 crianças. 

A seguir ao ataque, o Vishva Hindu Parishad (VHP) marcou uma greve-protesto que se adivinhava ir degenerar em violência contra a população muçulmana. O governo estadual não tentou impedir a greve e tão pouco agiu para travar os primeiros confrontos. 

Os números oficiais dizem que 790 muçulmanos e 254 hindus morreram, mas outras fontes falam em dois mil muçulmanos mortos e referem-se ao caso como o progrom de Gujarat — violência programada e organizada para matar uma população. Acusam Modi, que ao dizer que “terroristas” tinham atacado o comboio, abriu espaço à interpretação de que a violência que se seguiu foi uma resposta adequada. A entrada de Modi nos Estados Unidos e na União Europeia esteve vedada por causa do massacre de Gujarat. Mas o chefe do governo estadual foi ilibado de responsabilidades pelo tribunal que julgou o caso. 

Nos últimos dias de campanha, Sonia Gandhi, mãe de Rahul e presidente do Congresso, quis reavivar o debate da religião. Modi, disse, citada pelo Hindustan Times, personifica a “política do ódio”. “A cultura do BJP vai enfraquecer o país”, disse Sonia, recordando que o Congresso é o partido da Índia plural, dos hindus, dos muçulmanos e dos sikhs. 
Modi nega ser a figura mais fracturante da Índia, como lhe chamam os analistas. Nega estar numa guerra entre o sectarismo e o secularismo (The Guardian). E responde chamando shezade a Rahul — o “príncipe” é bisneto de Nehru, neto de Indira e filho de Rajiv, que também foi primeiro-ministro. “O BJP é um partido optimista. A nossa força e os nossos valores democráticos são de tal forma que até uma pessoa como eu, com um passado de pobreza, consegue ser nomeado candidato a primeiro-ministro.” “De um lado temos o shazada, do outro temos o vendedor de chá.” “Em democracia, as dinastias políticas estão erradas. Temos de libertar o Estado e a nação dessa dinastia.” Frases de Narendra Modi que fizeram muito sentido aos ouvidos dos eleitores.

E que o podem tornar no segundo nacionalista hindu na chefia do Governo da Índia, a seguir a Atal Behari Vajpayee (13 dias em 1996, um mandato completo entre 1998-2004). Vajpayee — o homem que enfrentou as críticas do mundo com os testes nucleares indianos de 1998) também foi apanhado pelos motins em Gujarat. Nesta campanha, muitos analistas indianos escreveram textos de comparação entre o ex-primeiro-ministro e o aspirante ao lugar — são ambos celibatários e bons oradores. Mas o percurso de um e outro são pouco comparáveis. Vajpayee teve uma educação britânica e construiu uma carreira política em Nova Deli, onde foi deputado durante décadas. Era, dizem as biografias, um homem elegante, diplomata e afável e Nehru disse-lhe que com as suas qualidades um dia seria primeiro-ministro. 

Na comparação, Modi é agressivo, é um atacante que pessoalizou a campanha e, por arrastamento, o partido — o que é uma novidade na política indiana e na estrutura tradicional dos partidos.

“Hitler foi um arrogante que pensava que o povo não tinha sabedoria e, por isso, não era preciso ouvi-lo. Pensava que tinha todo o conhecimento do mundo. Também há um líder na Índia que diz, arrogante: ‘Eu fiz isto, eu fiz aquilo, eu não tenho de dar explicações.’ Um líder não pode ser arrogante”, disse Rahul Gandhi num comício. Falava de Modi como um ditador — o que o primeiro-ministro Singh, ao denunciar o BJP como o partido de um só homem, não ousou fazer.

Os analistas dizem que a Índia estava pronta para um homem assim, que é a imagem da ordem por oposição ao caos do partido que mais anos governou na História da Índia. 

Se vencer as eleições como dizem as previsões, fará mudanças substantivas no país, considera o especialista em Índia da London School of Economics. Mas também terá de governar fazendo alianças que o obrigarão a moderar-se. E dificilmente se tornará o radical hindu que o Congresso tenta projectar e a quem pelo menos um radical do Congresso, o candidato Imran Masood, do Uttar Pradesh, ameaça cortar aos bocados.

Ver também Ponto de Vista, por Jorge Almeida Fernandes, no primeiro caderno do PÚBLICO

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Mulheres muçulmanas dirigem-se para mesa de voto no Uttar Pradesh, o estado mais populoso da Índia e com grande influência no resultado final Anindito Mukerjee/Reuters
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