A banalização do incumprimento da lei

A actual lei e sistema de fiscalização servem para alguma coisa?

O acórdão do Tribunal Constitucional, publicado recentemente, relativo às contas apresentadas pelos partidos políticos respeitantes ao ano de 2009 não só revela, mais uma vez, a falta de transparência dos partidos sobre as formas de financiamento das suas actividades, como também coloca sérias dúvidas sobre a viabilidade do actual sistema de regulação e fiscalização.

As irregularidades/ilegalidades detectadas já se tornaram numa rotina burocrática, tal como acontecia durante o regime de fiscalização bicéfala de carimbo que vigorou entre 1993-2003: os relatórios de auditoria da ECFP detectam, o tribunal sanciona, as sanções (à partida) são pagas (embora sobre esse procedimento não haja registo público)... e os partidos continuam a praticar mais do mesmo. Como refere o relatório do GRECO, o facto de alguns partidos políticos serem continuamente sancionados após cada eleição levanta sérias dúvidas sobre o caráter eficaz e dissuasor das sanções aplicadas. Por outras palavras, a impunidade instalou-se.

O acórdão volta a alertar para a “impossibilidade de confirmar a origem de algumas receitas”; as “deficiências de suporte documental”; ou os “donativos e pagamentos em numerário acima do limite legal”, entre outras práticas reprováveis. Não há nada de novo nisto.

Existem, contudo, alguns elementos interessantes neste novo acórdão que importa sublinhar e para os quais já tive a oportunidade de alertar em outras ocasiões:

– A relação entre os partidos e a banca carece de rigor e escrutínio, em particular quando a última concede empréstimos a partidos em funções governativas, sendo ao mesmo tempo beneficiária de resgates financeiros estatais;

– Continua a haver uma recusa de informação ou de esclarecimentos adicionais à fiscalização por parte de fornecedores no que concerne a aquisição de determinados serviços. Alguns fornecedores são escolhidos sem qualquer consulta do mercado, em incumprimento dos regulamentos internos de compras dos próprios partidos e das regras de contratação a que qualquer beneficiário de dinheiros públicos está sujeito. Mas o mais caricato é que alguns dos fornecedores sejam empresas de marketing dirigidas por ex-funcionários do partido! Visto que o legislador não acautelou esta situação na actual lei de financiamento político, seria útil que o Tribunal de Contas se pronunciasse oportunamente sobre este assunto.

– A ausência de clarificação de alguns conceitos operacionais, como por exemplo a angariação de fundos, resulta na criação de mecanismos de branqueamento de receitas ilegais ou de proveniência duvidosa. Os partidos declaram o que bem lhes apetecer e como lhes apetecer como receita de angariação de fundos, sobretudo durante campanhas eleitorais, de modo a maximizar o montante da subvenção pública de reembolso de despesas.

– Outro ponto importante que já tinha caído no esquecimento da maioria dos portugueses tem a ver com os dinheiros recebidos ilegalmente das assembleias regionais. Os partidos integraram como receita, nas suas contas anuais, subvenções que tinham sido atribuídas a grupos parlamentares. Fica por esclarecer para quando e em que moldes será feita a restituição desse valor ao Estado.

Tendo em conta a banalização do incumprimento da lei, a derradeira pergunta é a de saber se a actual lei e sistema de fiscalização servem para alguma coisa. O mérito de um sistema de regulação/fiscalização, não se mede apenas pelo número de infracções detectadas e sancionadas, mas sobretudo pela alteração de comportamentos dos visados mediante a apropriação de princípios de ética e desse ponto de vista a situação pouco ou nada evoluiu.

Politólogo, Universidade de Aveiro

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