Faz hoje 100 anos a única escola do país com um sistema de ensino à distância

Com uma tradição de formação profissional, a Escola Secundária de Fonseca Benevides em Lisboa alargou-se a outras realidades: hoje tem ensino à distância para alunos que emigraram com os pais.

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A escola com o último lugar no ranking tem um projecto único no país Raquel Albuquerque, Joana Bourgard

Rafael vive com os pais no Moxico, província de Angola, para onde o pai emigrou em 2010 à procura de trabalho. Dois anos depois de o pai ter ido, Rafael, a mãe e a irmã mais nova foram ter com ele. O pai arranjou trabalho como montador de estruturas metálicas e a mãe como assessora da administração de uma empresa de construção civil. Foi o desemprego em Portugal que lhes forçou a partida.

O primeiro ano de aulas de Rafael foi no colégio Salesianos, mas não correu bem. “Era um programa muito denso e as turmas tinham cerca de 50 alunos”, conta a mãe, Ana Catarina Valente, através de videochamada, ao lado do filho, a partir de Angola. Os maus resultados na escola levaram-na a pensar em alternativas e uma delas era regressar, mas “a pior coisa era ter de voltar ao sufoco de não ter trabalho em Portugal”.

Um dia, ouviu um casal alemão falar sobre o ensino à distância disponível na Alemanha. Quis saber se o mesmo existia em Portugal, procurou na Internet e encontrou o Ensino à Distância para a Itinerância (EDI), um projecto único no país, existente desde 2010 na Escola Secundária de Fonseca Benevides, em Lisboa, que comemora hoje o centésimo aniversário.

O requisito era ter um computador e ligação à Internet, para além da impossibilidade comprovada de não poder frequentar a escola presencialmente. Cumpridos os requisitos, Rafael, 12 anos, entrou numa turma do 6º ano e aprendeu a lidar com a forma como as aulas se organizam: uma plataforma virtual, um chat para falar com os colegas e os professores, as vídeochamadas para aulas específicas e um fórum para recolher os materiais das disciplinas.

Sobre a rotina do dia-a-dia, Rafael é claro: “Levanto-me de manhã, tomo banho, como o pequeno-almoço e vou para a escola”. Só que a escola, esclarece a mãe, é no escritório onde ela trabalha. “Ele vai ter comigo e fica numa secretária, com o computador, ao meu lado. Com ele ali eu consigo controlar-lhe o estudo.”

O alívio que Ana Catarina sentiu ao encontrar o ensino à distância é partilhado por João Vincent Salazar, 42 anos, pai de dois filhos. Emigrado no Dubai, é lá que trabalha durante nove meses, todos os anos, como operador de vídeo e de câmara freelancer, garantindo a cobertura televisiva da época futebolística. Divorciado e com a tutela dos filhos, João diz ter sempre lutado para os ter consigo no Dubai, em vez de os deixar em Portugal. “Havia o entrave da língua porque já tinham iniciado o ensino básico, e o ensino neste país é muito caro”, conta, numa entrevista por email.

Quando soube do projecto, inscreveu os filhos, Vasco e Tomás, de 14 e 10 anos. “Foi com alguma expectativa, mas há coisas que não há nada que as pague, como o nosso bem-estar psicológico. Hoje estamos juntos os três.” Como pai, defende que este sistema de ensino lhe permite ter mais proximidade dos filhos e que se tornou essencial nos dias de hoje, “principalmente para os emigrantes”.

Mais alunos e mais diversificados
Rafael, Tomás e Vasco são três dos sete alunos filhos de pais emigrantes, inscritos no sistema de Ensino à Distância para a Itinerância, criado inicialmente para os filhos de profissionais circenses e feirantes, assim como para as jovens da instituição Ajuda de Mãe, que, em conjunto, continuam a estar em maioria (são cerca de 90% do total de alunos inscritos).

Se no início do projecto havia cerca de 80 alunos inscritos, hoje são 170, no total, divididos por 11 turmas entre o 5º e o 12º ano. Nos últimos tempos, como sublinha Patrícia Alves, coordenadora do projecto, “para além de ter crescido, o público também se diversificou”. Hoje inclui meninas de etnia cigana, jovens de centros de reinserção social e alunos que, por motivo de doença, não conseguem frequentar a escola.

“Acho que se não fosse o ensino à distância, eu teria desistido da escola quando fui mãe”, conta Cíntia Pereira, 20 anos. Frequentava o 10º ano do ensino regular quando engravidou. Chumbou esse ano e só depois do nascimento do bebé, hoje com quase dois anos e meio, é que soube da existência do ensino à distância através da Ajuda de Mãe, entidade parceira do projecto desde o início. Agora está a acabar o 12º ano, pronta para começar um estágio em Marketing.

A colega de turma Tatiana Mendes também é mãe: tem 19 anos e engravidou quando estava no 9º ano. “Estive de repouso absoluto para conseguir fazer os exames nacionais, mas fiz tudo ainda grávida.” Também a terminar o 12º ano, o objectivo é entrar na faculdade, em Relações Públicas. Quanto aos últimos três anos, garante que lhe deu “mais jeito” não ter aulas presencialmente, porque assim pôde ter a bebé consigo na instituição, onde assistia às aulas. A outra vantagem que ambas as alunas lembram era poder passar na escola, uma ou duas vezes por semana, para tirar dúvidas pessoalmente com os professores.

Ana Paula Silva é uma das 25 professoras do projecto. Há 14 anos que lecciona Matemática e em 2012 lançou-se no ensino à distância quando foi colocada, ainda como professora contratada, na escola Fonseca Benevides. Foi-lhe atribuído um horário para as turmas não-presenciais e assim deu início ao que hoje considera ser o projecto “mais desafiador” da sua carreira.

"É muito diferente. Temos de lidar com a ausência. No ensino presencial percebemos as reacções dos alunos e temos um feedback imediato, aqui não.” Apesar de não ser fácil e de ser preciso mais tempo para preparar as aulas, a professora acabou por escolher ficar no ensino à distância. “Queria continuar com o projecto e é gratificante ver o esforço recompensado.”

100 anos de ensino profissional
A Escola Secundária de Fonseca Benevides, única a ter este sistema de ensino, modernizou-se ao longo dos últimos 100 anos e o Ensino à Distância para a Itinerância “é um exemplo disso”, aponta João Santos, director da escola. Tradicionalmente de formação técnica, e dedicada a áreas como a Química e a Electricidade, a escola continua em paralelo a apostar no ensino profissional no regime presencial. “Os nossos alunos são os miúdos que querem ser electricistas, técnicos de informática, técnicos de análise laboratorial, técnicos de energias renováveis.” Só que há uma ressalva a fazer, aponta João Santos: “O ensino profissional nem sempre é visto como um caminho para a faculdade, mas pode ser.”

Há seis anos a escola deixou as instalações antigas, fundadas em 1888, e mudou-se para Alcântara, para o espaço pertencente à Escola Secundária D. João de Castro, que sofreu uma intervenção da Parque Escolar, garantindo hoje as condições estruturais e materiais dos vários laboratórios. “A nível de escola não nos falta nada. A nossa dificuldade é passar a mensagem de que há escola públicas a fazer um ensino de excelência, dando um nível de preparação técnica que outros alunos não têm.”

São cerca de 700 alunos matriculados na escola. Já foram mais, mas o decréscimo populacional na zona central de Lisboa afectou esse número. “As escolas das periferias estão cheias”, aponta o director, e por isso os pais trazem os filhos para perto dos locais de trabalho. “Temos miúdos do Seixal, Odivelas e Loures. Metade deles não moram aqui e levam horas a chegar cá. Isso tem consequências no rendimento escolar deles.”

O sucesso escolar é um dos temas discutidos. A posição da escola no último lugar do ranking do ensino secundário, de 2013, é motivo de debate, porque os únicos alunos a fazer exames nacionais na Fonseca Benevides – e, por isso, a contribuir para os rankings – são precisamente os alunos do ensino à distância, apesar de todas as diferenças que os distinguem de outros sistemas de ensino.

São desafios como este, associados a outras especificidades da escola, como os cursos de educação e formação (CEF) ou o ensino nocturno que estarão esta quinta-feira em debate na escola, às 14 horas, numa palestra que contará com a presença do professor Marcelo Rebelo de Sousa, com o tema “Educação em Portugal: que futuro?”.

Quanto ao centenário da escola, o director, João Santos, diz ter dois grandes objectivos: conseguir mais alunos e contrariar uma percepção actual errada. “A escola pública, hoje em dia, nem sempre tem uma boa imagem. Queremos mostrar o que pode ter de bom.”

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