Uma medalha contra a doença

Aos 27 anos, achamos que somos imortais. Mas o diagnóstico de uma doença pode mudar tudo. Ou não. É uma luta difícil, para a qual convém ter força e uma ponta de sorte. Marta Leão conta o seu caso. Para que outros tenham consciência dos riscos.

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João Cordeiro
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“Então Marta! Olha, já veio o resultado da biópsia. É mauzinho, é cancro. Mas não te preocupes que na segunda-feira tens consulta e vai ficar tudo bem”. É assim que Marta se recorda de receber a notícia, por telefone, a 30 de Janeiro de 2013, num dia de trabalho igual a tantos outros. Do outro lado da linha estava a mãe, Paula Leão, que já tinha passado por uma situação semelhante, de cancro da mama. Tentava transmitir à filha a naturalidade e a tranquilidade de alguém que conhecia aquela realidade na primeira pessoa.

Marta é do Porto mas trabalha como gestora de marketing em Lisboa há quase dois anos. No Verão de 2012, reparou por mero acaso num cabelo pousado sobre o peito e ao retirá-lo sentiu “uma pequena ervilha debaixo da pele”. Preocupada, mas sem nenhuma hesitação ou receio dos resultados, fez exames nos meses seguintes. Recomendaram-lhe vigilância apertada. O nódulo entretanto crescera e a biópsia que fez, meses mais tarde, confirmava as piores suspeitas.

Nas duas horas que se seguiram ao telefonema, vários foram os pensamentos e sentimentos que lhe passaram pela cabeça. Primeiro, a incredulidade: “Não, deve haver algum engano”. Depois, a revolta: “Não pode ser! Eu tenho 27 anos. Eu não fumo, eu porto-me bem. Não é possível”. Por último, uma aceitação condicional: “Há quem já tenha morrido disto aos dez anos, aos 20 anos. Não é mais injusto para mim do que foi para todas essas pessoas e as suas famílias. Se calhar vou começar a aceitar que a minha vida está destinada a acabar aos 27 anos… Mas aos 27 anos achamos que somos imortais, quando afinal estamos tão perto da morte e vemos os nossos planos de vida a ir por água abaixo”.

“Esse é o pior cenário possível? Óptimo!”
Eventualmente, o optimismo e a racionalidade característicos de Marta acabaram por vir à tona, após o choque inicial. “Passadas essas duas horas comecei a ser racional. Pensei: caramba, não deve haver muita gente a detectar isto mais cedo do que eu. Até pode ser que encontre alguma sorte”.

O exemplo da mãe, submetida a uma mastectomia bilateral (cirurgia que retira as duas mamas) em 2007, acabou por ter um papel determinante. A visão de Paula quanto à doença da filha e a sua própria doença foi simples e segura: “Nós é que temos de vencer o cancro, e não o contrário”. A olhar para o exemplo que tinha em casa e sem grandes alarmismos, Marta ia pensando: “Se aquele é o pior cenário possível, então óptimo!”

Procurou as resoluções pragmáticas que a deixaram “dormir melhor à noite, sem preocupações”. Recorreu a uma mastectomia do lado esquerdo com reconstrução. “Correu lindamente. Dois dias depois da cirurgia estava em casa. Uma semana depois estava a trabalhar”. O prognóstico indicava um cancro com uma forte componente hormonal, que por isso poderia ser tratado sem recurso a quimioterapia ou radioterapia. Marta encontrou alguma sorte no meio do azar.

Uma perspectiva “missionária”
É relativamente raro um caso de cancro da mama numa idade tão prematura, até porque os riscos aumentam linearmente, consoante a idade, potenciados pelo envelhecimento dos órgãos e músculos. Segundo os dados do Portal de Oncologia Português, a probabilidade de ter cancro da mama aos 20 anos é de uma em 19 mil. Na casa dos 30 a probabilidade passa para uma em 2525, e assim progressivamente, até se chegar à faixa etária dos 60, em que a probabilidade chega aos 12%, ou seja, uma em cada oito mulheres que poderá vir a desenvolver a doença.

As hipóteses remotas numa idade menor não devem no entanto levar a que se descure a vigilância médica constante: “Ainda é muito raro ter cancro da mama aos 27 anos, mas pode acontecer. A maior parte das pessoas desconhece muito o assunto, ou que é possível aparecer nesta idade. Toda a gente está muito atenta e faz exames, mas só a partir dos 40 anos”. Foi precisamente essa atenção e a regularidade dos exames que evitou o agravamento da doença com um prognóstico mais negativo.

Uma detecção precoce pode mesmo ser decisiva e é essa a mensagem de Raising Awareness, um blogue criado por Marta no dia 30 de Janeiro de 2014, exactamente um ano depois de conhecer o resultado da biópsia. “As pessoas diziam-me que devia contar a minha história, especialmente por ter sido um caso de sucesso”.

O blogue surge como forma de alerta: “Não queria criar o pânico. Desde que tive cancro que fiz questão de não o esconder, pelo contrário, de contar às pessoas.” A inquietação que causou levou a uma mudança de mentalidades e hábitos de algumas pessoas, acredita Marta: “Havia imensa gente da minha idade, até mais velhas do que eu, que me diziam que nunca tinham feito nenhum exame”.

Daí a “perspectiva missionária” de que fala o amigo de longa data, Filipe Secca, que mesmo à distância, no Porto, se apercebia desta vontade: “Ela procurava sempre sensibilizar as amigas, sensibilizar as pessoas à sua volta”.

Palavras que assustam
A 300 quilómetros de distância de Lisboa, os pais tinham uma percepção dicotómica da situação pela qual a filha passava. Paula, de 55 anos, nunca pôs em causa o agravamento da doença e apoiou incondicionalmente a decisão de fazer uma mastectomia preventiva, de forma a “viver mais em paz”. O pai, Rui Leão, de 58 anos, acompanhou a evolução com bastante mais negativismo: “Foi um céu que caiu de repente. Com a experiência que já tínhamos da minha mulher, não foi como se nada tivesse acontecido. Ficam sempre algumas marcas, mesmo que pareça que está tudo bem. Mas espantou-me a disposição com que a Marta reagiu, toda a gente falava da atitude positiva dela”.

A abertura e a energia foram constantes nas atitudes da Marta. Conta Joana Guedes, colega e amiga com 40 anos, que deu pela ausência dela no trabalho durante alguns dias. Quando a voltou a ver, Marta tinha uma novidade para lhe dar. “Estávamos na nossa salinha de fotocópias quando ela me disse aos pulinhos, e sempre com o seu sorriso: “’Ah! Não sabes ainda, estive a fazer exames e estou com cancro da mama.’ O meu chão desabou e as folhas que tinha na mão foram poucas para me abanar."

Nesse dia e em tantos outros, quando dava a notícia aos amigos, era ela que os tranquilizava, e não o contrário. “Como é possível partilhar com tanta naturalidade algo que nunca queremos ouvir? Seria falta de consciência ou de conhecimento?” questiona Joana, na altura completamente intrigada com a coragem da colega.

“A palavra cancro, a palavra maligno…são palavras que assustam. As pessoas ficavam muito atrapalhadas quando lhes contava. Nós associamos sempre estas palavras à morte, assim como eu associei pelo menos na primeira hora. Queria desmistificar, tirar esta carga. Sim, é cancro e pode ser fatal, mas também pode ser que corra tudo bem”. Marta evitou sempre criar drama onde ele “não existia”.

Um gelado e um cliché de Domingo
Mas mesmo a “força da Natureza” como lhe chama a amiga Joana, teve alguns momentos decisivos em que a confiança e o espírito positivo balançaram. Quando um grupo de médicos especialistas se reuniu para debater o caso da Marta, já depois da mastectomia, não havia grandes certezas. “Ligaram-me depois da operação a dizer que o meu caso não era fácil. Não tinham uma amostra suficiente de pessoas com 27 anos a ter o que eu tinha, e por isso os médicos dividiam-se entre avançar ou não para tratamentos preventivos de quimioterapia”.

“Aí caiu-me tudo. Por um lado pensei que era bom sinal, que o caso era realmente discutido”. Mas a quimioterapia não estava mesmo nos planos. “Passado algum tempo já estava mentalizada e já andava a escolher o lenço para combinar com um vestido que tinha comprado para o casamento de uma amiga”.

Felizmente, o lenço não foi necessário. O exame MamaPrint feito no estrangeiro revelava pormenores clínicos mais específicos que permitiram excluir a possibilidade destes tratamentos. “Foi um alívio. Por volta desses dias lembro-me perfeitamente de ir com duas amigas à noite, comer um gelado, no Chiado. Já estávamos em Abril e estava uma noite muito boa. Lembro-me de estar a comer o gelado e de me estar a saber lindamente. E pensei nos clichés dos filmes de Domingo, em como é preciso um abanão para encararmos a vida com outros olhos. É pena que tenhamos de levar estes abanões para mudarmos atitudes”.

“Nem eu vivo no medo”
Actualmente, Marta tem as mesmas probabilidades de um ressurgimento do cancro que uma pessoa dita “normal”. Para uma prevenção e controlo mais apertados, apenas faz um tratamento hormonal que se prolonga pelos próximos cinco anos.

“Infelizmente, o cancro é uma doença que está a matar muita gente. Muita gente já morreu disto, muita gente vai morrer disto.” O Raising Awareness surgiu por isso “como um alerta, para irmos vigiando e tomando as atitudes correctas. Mas não digo vivermos no medo, nem eu vivo no medo”.

Sem pretensões de aconselhar ou dar “frases inspiradoras”, Marta usa o blogue para fazer um relato objectivo, de factos e situações pelas quais passou, fornecendo um sítio de consulta para quem esteja a passar pela mesma situação ou às respectivas famílias.

Mas não só. Inês Barros, arquitecta de profissão e amiga de Marta, juntou-se ao projecto para o materializar em medalhas lisas e simples, “que deixam correr o essencial, a mensagem”, Já estão disponíveis e servem para retirar o blogue da exclusividade no espaço online: “Eu também tenho 27 anos, pessoalmente foi um alerta muito grande. Não estava a contar que ela passasse por isto, muito menos com esta idade”.

A medalha, pousada sobre o peito, é então um pretexto para falar no assunto: “gera um passar de palavra, é uma forma de sensibilização. As pessoas que reparam na medalhinha levam-me a explicar porque é que a tenho”, diz Inês. Foi também o pretexto encontrado para ajudar financeiramente a Associação Laço, que se dedica ao apoio das famílias e doentes afectados pelo cancro da mama.

À semelhança da mãe, Marta procurou sobretudo uma forma de mudar mentalidades: “Há muita gente que não faz os rastreios com medo dos resultados, mas mais tarde, isso pode ter um preço”, avisa Paula. O pai completa o alerta deixado às camadas mais jovens: “Espero que esta gente nova veja o exemplo da Marta e que não faça como as pessoas da nossa idade, que não vão ao médico, não se cuidam e deitam os problemas para trás das costas. Como se vê, não acontece só aos mais velhos.”

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