Retrato do romance quando arte total

A nova tradução de Ulisses é um salto qualitativo que transporta o grandioso romance de James Joyce para o nosso século

Stanislaus Joyce, generoso guardião do irmão, e notável ressentido, descreveu Ulisses como “o dia mais longo da literatura”, e uma das personagens do romance (Bloom) dirá mesmo, a dada altura: “Tem sido um dia invulgarmente fatigante” (p. 494). Como é sabido, a acção do grandioso romance de James Joyce concentra-se num único dia: 16 de Junho de 1904, em que se deu o primeiro passeio de James e Nora. Partindo dessa data de importância decisiva para o seu cosmos pessoal, Joyce efabulou um dia de Dublin fraccionado pelos corpos e pelas mentes de três personagens cuja centralidade vai sendo disputada, questionada, refeita: Leopold Bloom, Molly Bloom (a sua mulher, prestes a reincidir no adultério) e Stephen Dedalus. Nada, contudo, é assim tão simples, nesta enorme narrativa — Joyce chamou-lhe enciclopédia —, fulgurante desautorização de modelos que se estendem desde a Grécia arcaica até à contemporaneidade do autor.

Instado a escolher o seu herói preferido como tema de uma composição escolar, o jovem James escolheu Ulisses. Como explicou mais de uma vez, descobrira-o em Charles Lamb, na adaptação que este fizera da Odisseia, e foi uma presença constante na sua vida. Antes de chamar Dublinenses aos seus contos, pensou intitulá-los Ulisses em Dublin. De resto, pensara incluir no que veio a ser aquele livro um conto chamado, precisamente, Ulisses, que nunca chegou a escrever. A matéria homérica permitiu-lhe estabelecer o que viria a chamar o “esqueleto” do romance. Sem nunca as explicitar, James Joyce estipulou três grandes partes (apenas as revelou através dos míticos esquemas, partilhados com amigos e críticos, que se tornariam canónicos): Telemaquia, com três episódios; Odisseia, com 12; Nostos (regresso), os três finais. Estas repartem entre si os 18 episódios que, sem seguirem a ordem da epopeia homérica, nem, tão-pouco, a integralidade da saga, reconfiguram o mito de Ulisses e tornam-no instrumento e arquétipo de um romance por sinal destinado a revolucionar todos (ou quase todos) os cânones da ficção narrativa. A realização de Joyce passou muitíssimo ao largo da paráfrase, ou, sequer, da alusão. Basta pensar, por exemplo, que, num episódio como o XI, as Sereias são empregadas de bar; e que, no XVI, Eumeu, o porqueiro homérico é um “soi-disant marinheiro” (p. 561) cujas façanhas e patranhas tomam o lugar das ambiguidades e dos disfarces homéricos. Por outro lado, como é óbvio, Bloom, o metamorfoseado Ulisses do romance, não é, literalmente, pai de Stephen; no entanto, a relação dos dois configura uma relação simbolicamente paternal e filial. Na mecânica de Ulisses, eles chegam mesmo a fundir-se num só: Bloom, o físico (amante de vísceras de animais), e Stephen, o espiritual (poeta e filósofo amador). O que adquire uma dinâmica especial se tivermos em conta que Leopold e Molly haviam perdido o seu filho Rudy (a filha sobrevivente é quase só uma referência oblíqua) e que, de uma forma extremamente subtil, Bloom tenta reencontrar em Stephen essa possibilidade de um filho.

Em Ulisses todas as peças encaixam umas nas outras — apesar de um aparente caos de estilos e técnicas. Não muitos romances formam um organismo tão interligado — não por acaso, o autor atribuiu um órgão a cada episódio que, disse numa carta, “deixa atrás de si um campo queimado”. A multiplicidade de estilos, ao invés de tornar o romance uma massa ilegível, faz dele essa gloriosa polifonia romanesca que desmente a falácia de uma univocidade composicional, criando um mosaico de funções em que cada episódio é um corpo, mas também um órgão, sem deixar de ser uma parte do dia, e mesmo um dia (tudo isto o escritor foi dizendo, ao longo dos anos, de uma forma ou outra). Discutindo com Frank Budgen o episódio Nausícaa, Joyce falou de um estilo “insípido, meloso, adocicado e engavetado, com efeitos de incenso, marianismo, masturbação, guisado e conquilhas, a paleta do pintor, clichés, circunvoluções, etc.” Talvez tivesse em mente passos como: “porque não se podia comer coisas poéticas como violetas ou rosas e eles haviam de ter uma sala de visitas belamente provida com quadros e gravuras e a fotografia de Garryowen o adorável cão do avô Giltrap que só lhe faltava falar, tão humano” (p. 362). Não se trata de um monólogo interior, mas do discurso indirecto livre, que replica os limites e tiques, as falhas e corrupções estilísticas de uma jovem incauta e ignara, Gerty MacDowell. No episódio X, Rochedos Errantes, marcado por um “pontilhismo” de microepisódios, estes parecem simular as atribulações náuticas de Ulisses. Bloom pega então, entre outros (um pseudo-Aristóteles e um romance de cordel), num volume de Sacher-Masoch, um autor que marca a composição de Bloom, cujo masoquismo — “Meu amo! Minha ama! Domadora-de-homens!” (p. 509) — teria sido moldado não só por alguns dos fantasmas eróticos do próprio Joyce, mas também pela sua biblioteca pessoal, que incluía vários títulos daquele autor. Ítaca, descrito pelo autor como um “catecismo matemático”, explica, no rigor de um discurso horizontal — sem nenhuma das interpolações verticais a cortarem a planura da exposição, como nos restantes episódios —, a globalidade dos acontecimentos anteriormente disseminados e segmentados, cindidos por intermitências beligerantes, do ponto de vista da narrativa, notavelmente em Circe. Contrapõe-se-lhe Penélope, o último episódio, iniciado e concluído da mesma forma: “Yes”, uma palavra que Joyce considerava feminina. Na sua continuidade desprovida de pontuação, ou de uma estruturação evidente, todo o episódio “gira como a esfera da Terra, lenta, seguramente”, pois é, na ontologia de Joyce, a emanação do feminino.

A nova tradução portuguesa deste épico, agora publicada pela Relógio D’Água, é tanto um notável empreendimento filológico e literário como um processo de amor. No episódio IX, Cila e Caríbdis, a perícia do tradutor, Jorge Vaz de Carvalho, alia fidelidade a um espírito rigorosamente criativo — “Por entre os campos de centeio/ Se deitaria o bel plebeio” (“Between the acres of the rye/ These pretty countryfolk would lie” (p. 201) —, em que a sonoridade e a toada musical se sobrepõem a classes gramaticais e mesmo à vulgaridade da estrita sinonímia. No episódio XII, Ciclope, traduz-se por “Arre! que leve o diabo a pata que o patego pegava” a expressão “Arrah! bloody end to the paw he’d paw”, substituindo uma aliteração em “b” por uma em “p”, mas mantendo os jogos de sentido. Também em Cila e Caríbdis, o estudioso de Sena que Jorge Vaz de Carvalho igualmente é verteu “foamborn Aphrodite” pelo etimologicamente rigoroso (e seniano) “anadiómena Afrodite” (p. 210). No episódio XIV, Gado do Sol, a versão é plenamente aliterativa: “Por brotar bebé basto de bênçãos. A vida no ventre valeu-lhe veneração” (p. 385), uma fórmula, de resto, perfeitamente de acordo com o plano de Joyce (que frisou a importância da aliteração): “Bloom é o espermatozóide; o hospital, o útero; a enfermeira, o óvulo; Stephen, o embrião.”

Compare-se, nas três traduções actualmente mais acessíveis em Portugal (João Palma-Ferreira, Antônio Houaiss, Jorge Vaz de Carvalho), a abertura de Ulisses (que corresponde à primeira frase de Telémaco): “Pomposo, roliço, Buck Mulligan veio do alto da escada, trazendo uma tigela com espuma de barbear, na qual se cruzavam, em cima, um espelho e uma navalha” (João Palma-Ferrreira); “Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha” (Antônio Houaiss); “Soberbo, o roliço Buck Mulligan veio do cimo das escadas, trazendo uma bacia com espuma de sabão sobre o qual um espelho e uma navalha se cruzavam” (Jorge Vaz de Carvalho). Pondo de parte a torção idiomática (“vaso de barbear”) e um solecismo (“na qual se cruzavam, em cima,…”), seria sempre falhar o alvo não reconhecer a música de Joyce, o fluir discursivo, especialmente nos três primeiros episódios do romance, os mais estáveis do ponto de vista estilístico, os mais alinhados, ainda assim, a algo como uma tradição romanesca (apesar de uma primeira intromissão do monólogo interior). Para nada dizer da rede de significados que logo começa a cerzir-se apenas nesta escassa primeira frase. É evidente que a tradução de Vaz de Carvalho representa um salto qualitativo e um cuidado, marcadamente superior, na gestão das equivalências, das sonoridades e dos acertos frásicos. Outro exemplo: Em Circe, Jorge Vaz de Carvalho traduz “Cardinal Sins. Monks of the screw” por “Pecado cardeal. Monges da fornicação” (p. 500) onde João Palma-Ferreira tinha “Pecado cardeal. Frades do saca-rolhas” e Antônio Houaiss “Cardeal pecado. Monges saca-rolhas”. Em ambos os casos, como é óbvio, os tradutores foram guiados pelo significado mais imediato, mas notoriamente distraído do contexto da ocorrência, para nada dizer da veracidade textual.

Na tradução de Jorge Vaz de Carvalho, resumindo, Ulisses pode fazer a transição para o nosso século, cumprindo o preceito joyceano de continuar à procura do leitor ideal.
 

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