Ave César, os que vão ler saúdam-te

Para ser cineasta, João César Monteiro teve de matar o escritor. Mas não existem crimes perfeitos. A sua obra literária vai ser publicada em cinco volumes, a partir da Primavera.

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João César Monteiro em Julho de 1991 José Barrigão/Estúdio F64/© Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

Em 1959, dez anos antes de fazer o seu primeiro filme, João César Monteiro publicou um livro de poemas surrealistas, Corpo Submerso, que decidiu destruir pouco depois. Não foi um crime perfeito. “A amiga [e poeta] Luiza Neto Jorge pôde ainda, não sei como, sacar meia dúzia de exemplares e à socapa ofereceu a alguns amigos, entre eles eu, com a promessa de ficarmos com o bico calado”, diz o editor e amigo de João César Monteiro, Vítor Silva Tavares, da &etc.

Durante muitos anos, o cineasta não soube que o livro sobrevivera. “Até que há um momento, em minha casa, onde o César era visita frequente para os jantarinhos – sic! ‘jantarinhos’ era expressão dele –, em que a conversa fica à volta de livros que se perderam. Dada a conversa que estávamos a ter, calhava muito bem, bumba, apresentar ao autor o exemplar que eu tinha”, lembra Vítor Silva Tavares, de 76 anos, que partilha com César Monteiro mais do que uma certa parecença física (o corpo magro, o perfil aquilino); a língua também lhe sai afiada, com um fulgor simultaneamente aristocrático e popular. “Vou ao meu armário onde está a livralhada, saco o livrinho e pespego-lhe com o dito nas fuças. O gajo olha para aquilo, arregala o olho, nem quer acreditar. E vamos ter uma sessão memorável – uma pena não haver lá máquina de filmar. O César vai ler o livro todo, borrando-se a rir…”

Agora, que a Letra Livre se prepara para publicar a obra escrita integral de João César Monteiro – ou tão integral “quanto possível”, nota Vítor Silva Tavares, admitindo que possa existir correspondência dispersa que não foi ainda encontrada –, eis a questão: o que fazer com o livro de poemas da juventude, rejeitado pelo autor?

“Se nós vamos fazer um apanhado da obra escrita do César, não faz sentido pôr de lado um livro que ele soube que não tinha sido totalmente destruído. Até porque não é tão mau como na altura por certo achou que era”, justifica Vítor Silva Tavares.

A Letra Livre planeia editar cinco volumes, o primeiro dos quais deverá sair até Maio. Mas o livro de poemas Corpo Submerso será publicado “num volume à parte, talvez até com um tratamento gráfico distinto, para não o incluir na obra total”, explica Vítor Silva Tavares. “Tiragem reduzida, só para oferecer a amigos e admiradores.” Não vai, portanto, estar à venda. “É a maneira que me parece mais feliz. Aquela que eu admito que, se o César estivesse agora aqui connosco, ele próprio aprovaria.”

Apesar de ter sido o único editor com quem o realizador trabalhou, Vítor Silva Tavares não quis retomar esse papel agora. “No próprio dia em que o João César Monteiro vai a enterrar no Cemitério dos Prazeres, à saída, o produtor Paulo Branco veio falar comigo, no sentido de se vir a publicar a obra escrita do César. Ao que eu lhe disse logo ali que não era nem o lugar nem o momento para abordar a questão. Mas mais adiantei: que estava completamente fora de causa que fosse eu ou a &etc a proceder a esse trabalho. O mais fácil é dizer que a &etc não procede a reedições. Mas o principal era outra coisa: tudo quanto me ligava ao César e vice-versa morreu com ele. Não era capaz de voltar a trabalhar nas coisas dele.”

Silva Tavares diz que havia outras editoras interessadas em publicar a obra escrita de César Monteiro – os três livros saídos na &etc, com o seu formato quadrado, Morituri Te Salutant (1974), Le Bassin de John Wayne Seguido de As Bodas de Deus (1997) e Uma Semana Noutra Cidade: Diário Parisiense (1999), encontram-se esgotados há muito e nunca foram reeditados. Mas o editor concluiu que a Letra Livre, uma pequena livraria e editora que nem sequer existia quando César Monteiro morreu, em Fevereiro de 2003, seria o melhor lugar para fazê-lo. “A nossa ousadia em nos propormos editar o César Monteiro é talvez desproporcionada em relação à nossa pequenez”, diz Carlos Bernardo, um dos três sócios da Letra Livre. “Mas está directamente relacionada com a nossa profunda admiração pelo João César Monteiro.”

“O que levou a Letra Livre a fazer foi um movimento de admiração. Não entra o deve e o haver”, intervém Vítor Silva Tavares. Além de que é uma editora com “uma postura anarquista”. “Não esquecer que uma das costelas muito fortes no João César Monteiro era uma costela anarquista. Esse lado libertário pesou também no meu espírito.”

De si próprio, Silva Tavares diz que é uma espécie de coordenador-geral da iniciativa. Foi também ele que recomendou entregar o design da edição a Luís Henriques, artista gráfico do Homem do Saco, um atelier de tipografia que produz livros de forma artesanal e com tiragens minúsculas – mas onde cada edição é um acontecimento. “Dada a minha provecta idade e, assim como assim, tendo mais que fazer aqui na &etc, também eu, tal como o César, digo ‘vai e dá-lhes trabalho’”, diz Silva Tavares, citando um diálogo de Recordações da Casa Amarela. “Que é o que eu estou a dar a estes rapazes”, ri-se.

Actos literários perfeitos
A edição da obra escrita de César Monteiro não se irá limitar à republicação dos livros por ele publicados, mas a uma recolha de tudo quanto o realizador escreveu, incluindo guiões de filmes, críticas de cinema e cartas subversivas contra os responsáveis pela política cultural dos governos (“A primeira condição para se ser secretário de Estado da Cultura, neste país, é distinguir uma vaca de um boi”, começa uma Carta aberta contra o secretário de Estado escrita em Julho de 1978).

“Vão aparecer coisas inéditas, coisas pessoais”, garante a realizadora Margarida Gil, que foi casada com César Monteiro. 

Os três primeiros volumes serão dedicados exclusivamente aos guiões dos seus filmes. O primeiro volume incluirá os scripts de Quem Espera Por Sapatos de Defunto Morre Descalço e A Sagrada Família: Fragmentos de Um Filme-Esmola, já incluídos em Morituri Te Salutant, mas também de Veredas e Silvestre, inéditos em livro. O volume incluirá duas versões do guião de Silvestre. “O filme começou a ser rodado em Trás-Os-Montes e acabou por ser filmado em estúdio e supomos que a existência de duas versões decorre dessa situação”, explica Carlos Bernardo.

O quarto volume será dedicado a polémicas e textos de intervenção e o quinto às críticas de cinema publicadas em revistas e jornais (O Tempo e o Modo, Diário de Lisboa, Cinéfilo, entre outros).

Em 1991, por ocasião da sua primeira retrospectiva em França, o realizador confessou, num texto autobiográfico, que teve de matar o escritor João César Monteiro para poder “filmar livremente”. “Tivemos os cravos de 74. Se toda a gente podia filmar, eu também podia. (…) Mas nessa altura, quase toda a gente me dizia que os filmes que eu fazia eram uma merda, que não tinha talento nenhum e sobretudo (e isso é que eu não suportava) que o que eu devia fazer era escrever, porque para escrever tinha imenso jeito.”

Mais uma vez, não foi um crime perfeito. Para as gerações que vieram depois, e que conhecem somente ou sobretudo o cineasta João César Monteiro, quem avisa amigo é: “A obra escrita, apesar de ser a base dos filmes, tem uma qualidade literária que a autonomiza dos filmes. São textos que seriam muito bons mesmo que não tivessem dado origem a filmes”, diz Carlos Bernardo. “São actos literários perfeitos, ponto”, remata Vítor Silva Tavares.

Apesar de muitas ideias gráficas ainda não estarem fechadas, Luís Henriques garante que uma coisa é já definitiva: a capa não terá nenhuma imagem, “até para enfatizar o lado literário”.

No contrato celebrado com o herdeiro e detentor do espólio de César Monteiro, o seu filho João Pedro Monteiro Gil, ficou acordado que o valor dos direitos de autor será reservado para a criação de um fundo destinado à conservação dos negativos e transferência para suporte digital dos filmes do cineasta.

Não existe ainda um calendário definido para a publicação dos restantes volumes.

Todos os excertos de textos de João César Monteiro citados neste artigo foram retirados do catálogo editado pela Cinemateca Portuguesa, em 2005.

 

 

 


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