Tantas línguas para dizer Mira Schendel

Foto
Pedro Granadeiro/Infactos

Caso à parte da arte brasileira do século XX, Mira Schendel é a silenciosa figura que Serralves põe a falar de Deus e da fenomenologia até 24 de Junho.

Tudo em Mira Schendel (Zurique, 1919 – São Paulo, 1988) dizia que ela vinha de outro lugar — na verdade, tudo em Mira Schendel dizia que ela vinha de lugar nenhum. A roupa sempre preta quando o preto ainda estava a décadas de ser a cor a usar. O sotaque sempre de estrangeira qualquer que fosse a língua (português — do Brasil — para as coisas do dia-a-dia, alemão para as coisas da filosofia, italiano para as coisas da infância, as línguas balcânicas com que contactou nas suas errâncias de judia sem país durante a Segunda Guerra Mundial e o inglês para outras, raras, eventualidades). A vontade sempre um pouco estranha de não pertencer conclusivamente a nenhum movimento, de não aderir a nenhum manifesto, nesses primeiros anos da segunda metade do século XX em que a arte brasileira se dividia e subdividia em famílias. E, no entanto, apesar de ter estado sempre tão aparentemente à distância de tudo, ela também fundou a sua, diz Tanya Barson, a curadora da Tate Modern que comissariou — com Taisa Palhares, da Pinacoteca do Estado de São Paulo — a maior retrospectiva internacional alguma vez dedicada à artista, desde há uma semana (e até 24 de Junho) no Museu de Serralves: “A Mira Schendel funda um paradigma alternativo na arte brasileira, que se tornará depois muito influente para várias gerações de artistas, sobretudo a partir da década de 1980.”

Em Londres, onde esta mesma retrospectiva teve a sua primeira vida entre Setembro do ano passado e Janeiro deste ano, Mira Schendel foi apresentada — continua a ser preciso apresentá-la, até no Brasil, onde está infinitamente mais representada em colecções particulares do que em museus — como “uma das mais importantes e prolíficas artistas do pós-guerra em toda a América Latina”, responsável, com os seus contemporâneos Lygia Clark e Hélio Oiticica, pela reinvenção do modernismo europeu no Brasil. Foi, de resto, por causa de Oiticica — Tanya Barson também o antologiou para a Tate Modern em The Body of Colour, de 2007 — que Mira Schendel chegou no Outono a Londres: havia vários trabalhos dela nessa exposição e Tanya Barson foi atrás.

“Interessou-me imenso a maneira como esses trabalhos ocupavam o espaço: pareciam irradiar uma energia incrível. Quanto mais ia ao Brasil e mais imersa ficava na arte brasileira, mais me apercebia de que o nome dela estava na boca de toda a gente. É curioso: é uma figura tão influente, e no entanto não é assim tão fácil ver o trabalho dela. Achei essa disjunção muito intrigante”, contou à jornalista do diário britânico The Guardian que a acompanhou a São Paulo numa das muitas vezes que até lá se deslocou para procurar em salas de jantar e quartos de dormir de coleccionadores as mais de 250 obras, nalguns casos nunca antes mostradas (pinturas, esculturas, desenhos), actualmente reunidas em Serralves. Interessou-lhe a relativa invisibilidade — e o quase total anonimato internacional, interrompido apenas em 2001 por uma individual no Jeu de Paume, em Paris, e depois em 2009 por uma retrospectiva a meias com o artista argentino Léon Ferrari no MoMA, em Nova Iorque — de uma artista com tanta descendência. Mas interessou-lhe sobretudo, conta agora aos jornalistas que a acompanham, já no Porto, numa visita guiada à exposição, a forma como “uma mulher”, uma deslocada da Segunda Guerra Mundial que dá por si no Brasil sem saber muito bem como (foi o primeiro país que lhe aceitou o pedido de imigração; tinha-se candidatado a vários), “forja praticamente sozinha uma carreira com um significado tão universal”. “Antes dela”, argumenta, “não há nem esta investigação tão profunda das questões da ontologia nem esta consciência tão aguda da materialidade da obra de arte. É fascinante presenciar o modo como nela a extrema profundidade das ideias corresponde à extrema beleza dos objectos que as corporizam. A arte brasileira deve muito a Mira Schendel: ela põe em movimento uma matriz completamente nova”.

Quase palavras

Mas o Brasil é apesar de tudo uma história relativamente tardia na vida de Mira Schendel, que ali chega (fixa-se primeiro em Porto Alegre, depois em São Paulo) já quase com 30 anos, vinda de muitos lugares — na verdade, vinda de lugar nenhum. Filha única de um judeu checoslovaco que era comerciante de tecidos e de uma modista italiana de origem judaica (mas convertida ao catolicismo), Myrrha Dagmar Dub nasce a 7 de Junho de 1919 em Zurique; os pais separam-se três anos depois e Myrrha tem uma vida transumante (pai na Suíça, mãe em Itália, avós em Berlim) até se fixar em Milão, onde a mãe entretanto casa com o conde Tomaso Gnoli, poeta e director da Biblioteca Nazionale Braidense. É aí que passa parte da infância e da adolescência: vive num apartamento no Palazzo di Brera, com acesso ilimitado (bastidores e tudo) à extraordinária colecção de arte da Pinacoteca homónima. O endurecimento do fascismo apanha-a já na universidade: em 1938, é forçada pelo decreto com que Mussolini retira a nacionalidade italiana aos cidadãos de ascendência judaica a abandonar os estudos de Filosofia e Belas-Artes. Atravessa os Alpes a pé, instala-se temporariamente em Sófia, mas em 1941 já está em Sarajevo, onde se casa com um croata de ascendência austríaca, Jossip Hargesheimer. O fim da Segunda Guerra Mundial podia ter sido o princípio da sua segunda vida — mas será preciso esperar mais três anos (os três anos em que Myhrra e o marido vivem como deslocados de guerra em Roma) para a vermos desembarcar, a 12 de Janeiro de 1949, no Rio de Janeiro.

Está em Porto Alegre quando começa a pintar (também dá aulas, trabalha como ceramista, publica poesia), continua em Porto Alegre quando ganha coragem para enviar trabalhos para a Bienal Internacional de Arte de São Paulo, que nesse ano de 1951 se realiza pela primeira vez, mas já não está em Porto Alegre dois anos depois. “São Paulo define completamente o modo como Mira Schendel se estabelece como artista no Brasil: é uma cidade de imigrantes como ela, uma cidade industrial (e são industriais, baratos, os materiais que Mira usa: talco, pó de tijolo), aspectos cruciais para o trabalho que viria a produzir”, comenta Tanya Barson na primeira sala da retrospectiva, que começa justamente em 1953, o ano em que Mira Schendel conhece o livreiro alemão Knut Schendel e encontra finalmente o seu lugar (ou não, como testemunha a sua única filha, Ada, ao Guardian: “Ela não se sentia em casa nem no Brasil nem na Europa. Esperava encontrar um lugar no Brasil. Mas não foi fácil. Nunca deixou de ser uma deslocada. O território sempre foi para ela uma questão e isso vê-se no seu trabalho”).

As suas pinturas desse ano, aquelas que introduziram Mira Schendel no meio artístico brasileiro, são ainda muito marcadas pela influência do modernismo europeu, e em especial por Giorgio Morandi e Alfredo Volpi — “É importante dizer que quando a Mira apareceu no Brasil era vista como uma pintora italiana”, refere Taisa Palhares. A década seguinte obriga-a a fazer o seu caminho, e a negociar a distância (mas não a ignorância) a manter em relação aos dois grandes movimentos da arte brasileira, o concretismo do seu grande amigo Haroldo de Campos e o neo-concretismo de Ferreira Gullar, Lygia Clark ou Lygia Pape. Com o passar do tempo viria a haver samba, e Chico Buarque, e João Cabral de Melo Neto, mas o verdadeiro mundo de Mira Schendel estava na Europa, e sobretudo na filosofia alemã (entusiasma-se com Husserl, que lê vorazmente na língua original, assim como Heidegger, Max Bense e Wittgenstein), o que desde logo faz dela uma outsider num meio intelectual dominado pela fenomenologia francesa e em particular pelas teses de Merleau-Ponty. “O interesse pela fenomenologia e pela ontologia — pela forma como existimos em relação com o espaço e com os objectos — percorre toda esta obra, dos primeiros aos últimos trabalhos”, sublinha Tanya Barson, apontando para um quadro de 1959 que a artista criou para ser colocado perpendicularmente à parede, e que a sua derradeira série, Sarrafos (1987), ecoa à saída da exposição.

É também nesses anos 1960 que o texto — matéria de que se alimenta grande parte deste corpo de trabalho autofágico: “Pintar (...) era uma questão de vida ou morte para mim”, há-de dizer — se torna imagem para Mira Schendel. Primeiro nas Monotipias (1964-67), a primeira das muitas séries que produziu em cima da toalha de plástico da mesa da cozinha em papel de arroz japonês — uma espécie de alfabeto filosófico de mais de 2.000 caracteres, talvez a verdadeira língua de Mira Schendel, aquela em que exprime a sua relação com Deus (mantinha-se muito próxima dos dominicanos), com o mundo e também com as pequenas aventuras da pintura (“Este é um desenho gostoso”; “Este é um desenho bem-feitinho”: as monotipias em português, diz Taisa Palhares, “são sempre as mais bem-humoradas”) —, depois com os Objetos Gráficos (1967-1968) que expõe na Bienal de Veneza em 1968.

Encontramo-los na quarta sala da exposição — a seguir às Droguinhas (1965-66), a sua aproximação à escultura, “que considerava absurdamente elevada e que quis tornar mais efémera, mais próxima do corpo”, diz Tanya Barson — e exactamente como os imaginamos depois de ler o poema que Haroldo de Campos escreveu para Mira uns anos antes: “Uma arte de vazios/ onde a extrema redundância começa a gerar informação original/ uma arte de palavras e de quase palavras/ onde o signo gráfico veste e desveste vela e desvela/ súbitos valores semânticos/ uma arte de alfabetos constelados/ de letras-abelhas enxameadas ou solitárias (...)/ uma arte onde a cor pode ser o nome da cor/ e a figura o comentário da figura/ para que entre significante e significado/ circule outra vez a surpresa/ uma arte-escritura / de cósmica poeira de palavras/ uma semiótica arte de ícones índices símbolos/ que deixa no branco da página seu rastro numinoso”. Letras em cima de letras, palavras em cima de palavras, uma floresta de línguas: Mira trabalha em palimpsesto, forçando transparências e sobreposições não só entre os vários objectos da instalação como dentro de cada um deles (“O avesso da transparência está à nossa frente e o ‘outro mundo’ afinal é mesmo este”, escreveu). “Sendo na prática uma autodidacta, ela demonstra uma compreensão avançada do funcionamento da linguagem e das questões da semiótica”, nota Taisa Palhares.

Era disso, do poder tão fundador da linguagem (e também do seu inevitável colapso, que viveu pessoalmente como desterrada) que Mira Schendel verdadeiramente queria falarem qualquer língua. E também do silêncio de Deus, que no entanto diz coisas em Ondas Paradas de Probabilidade, a instalação com que a artista participou na muito boicotada Bienal de São Paulo de 1969, já em plena ditadura militar. Para ela, arte era outra maneira de dizer nostalgia de Deus, e de tudo o que é impossível. Ou que pelo menos foi impossível para Mira Schendel, que quis matar-se depois de ser mãe, como a própria filha contou ao The Independent: “A Mira nunca ultrapassou a sua vida, a sua mãe, a sua dor. Toda a sua vida foi dolorosa. Todas as suas relações — comigo, com os amantes, com os amigos — foram difíceis. Ela não acreditava numa vida feliz.” 

Sugerir correcção
Comentar