E agora Maria de Medeiros escreve canções

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Ao terceiro disco, Maria de Medeiros arrisca cinco canções suas, espelhando uma realidade nómada de raiz bem portuguesa. Pássaros Eternos é um novo e seguro passo na sua carreira

Primeiro a actriz deixou surgir a cantora. Depois a cantora, sem nunca deixar a alma da actriz, fez-se compositora. Pássaros Eternos, o terceiro disco de Maria de Medeiros, fixa esta nova faceta da sua personagem num território, o da música, que ela já habita com naturalidade. E fixa-a com destemor e acerto. Maria escreveu letra e música de metade das canções do disco (cinco em dez), musicou Sophia de Mello Breyner, fez um texto para uma melodia do célebre guitarrista cigano Raimundo Amador, assinou uma parceria com The Legendary Tiger Man e recriou temas de Adriano Celentano e Elis Regina. Além disso, convidou vários artistas plásticos a ilustrarem cada uma das canções. E tem neste disco, além de um desenho dela própria, contribuições inspiradas de Javier Mariscal, Marjane Satrapi, Pedro Proença, Joan Sfar, Carlos Torres, Jorge Colombo, Pascal Rabaté, Victor Ramos e Pierre-Marie Brisson (no YouTube há animações feitas a partir de algumas destas ilustrações).

Sucessor de A Little More Blue (2007) e Penínsulas & Continentes (2010), Pássaros Eternos (de 2013, mas só agora lançado em Portugal) ainda tem Brasil dentro, como os anteriores, mas cruzado com uma realidade nómada de raiz bem portuguesa, que é a dela. “Este disco”, diz Maria, “nasceu da prática dos concertos, que nos levaram a viajar por muitos lugares e foram remodelando a banda. A confiança com os músicos levou a que fossem surgindo melodias, improvisações, ideias, e também foram acontecendo parcerias importantes.”

A primeira foi com Paulo Furtado, o “lendário homem-tigre” dos blues à portuguesa. “Propuseram-nos fazer um espectáculo em Paris em torno de Jim Jarmusch. Ambos escolhemos, espontaneamente, o filme Vencidos pela Lei, que nos tinha marcado na nossa adolescência, e fizemos um espectáculo que misturava música, teatro e cinema.” Ora entre as canções do filme houve uma que lhes chamou a atenção: “Ficámos muito intrigados com uma frase que a dada altura dizia misteriosamente o Tom Waits e que falava numa ‘shadow girl’, uma rapariga da sombra. Em torno disso criámos uma canção muito minimalista.” Shadow girl, precisamente, replicando na letra e na melodia o mistério original. E escolheram ainda uma canção italiana, proposta por Maria, porque “o Paulo fazia um [Roberto] Benigni extraordinário em palco” e ela queria, de algum modo, fazer “uma homenagem ao Benigni e à Itália” em simultâneo. “Como sempre adorei o 24 mila baci do Celentano e descobri que ele também gostava, fizemos uma versão juntos.”

A segunda parceria foi com Raimundo Amador. “Conhecemo-nos em Sevilha por acaso, mas houve uma simpatia imediata. Eu ia fazer um concerto no dia a seguir e convidei-o. Mas nunca pensei que ele fosse, porque o Raimundo Amador é uma megaestrela. Mas ele apareceu, ensaiou e foi um concerto inolvidável.” Raimundo tinha no computador, “meio perdido”, um tema que Maria achou “lindíssimo” e pediu-lhe autorização para fazer a letra. Assim nasceu Nasce o dia na cidade, canção que dá título ao disco: “Imaginei nessa canção uma criança que olha um pouco para o nosso mundo actual, numa das nossas cidades europeias, ameaçada pela crise, pelos rumores das rádios, que nos açoitam com as notícias catastróficas da economia, das bolsas, do desemprego, das angústias. A criança ouve essas coisas, vê o fluxo de carros no amanhecer e vai soprando nuvens de vapor na janela que assumem formas nas quais ela vê pássaros. São formas efémeras, mas o que é eterno é esta capacidade irredutível que temos de contemplar e de sonhar.”

Madrid, Sophia, Irão

A ligação a Espanha não ficou por aqui. Maria imaginou um andaluz a viver no Rio de Janeiro, dividido entre o flamenco e o samba, e escreveu Trapichana: “Conheço vários assim, espanhóis que vão para o Brasil e ficam completamente apaixonados pelas coisas dos trópicos. Foi pretexto para abordar dois tipos de música muito diferentes e difíceis até de casar, o flamenco e o samba, mas que têm coisas em comum: fazem-se em roda, têm uma energia extraordinária e são muito elaborados e muito populares ao mesmo tempo. A letra foi escrita em portunhol, entre as duas línguas, que é um pouco a minha realidade.”

Este viajar entre várias línguas (português, espanhol, inglês, francês, italiano...) continua a ser uma marca dos trabalhos musicais de Maria. No tema Noite, ela cria um blues a partir da história inventada de uma mulher que procura desesperadamente reencontrar uma estrela de cinema com que se cruzou certa noite, numa rua pejada de gente (a inspiração foi a noite madrilena, quando a instalaram num hotel em pleno Verão: “Uma loucura, milhares de pessoas, buzinas, nunca vi uma noite tão intensa”). Há ainda The Cougar Song, em inglês, resposta no feminino à Garota de Ipanema mas com uma mulher mais velha a cortejar um jovem (“A minha ideia era fazer uma balada swingada que tivesse a sensualidade de quem olha para a beleza masculina e lhe faz uma pequena ode”); Diz que é fado, mescla de jazz e blues em longínquo caldeirão lisboeta; Por delicadeza, poema de Sophia que lhe trouxe, nas palavras ditas, a sugestão da música que inspirou a canção; e Quem és tu?, a abrir o disco, misto de curiosidade e devaneio juvenil, dedicada “a todos os desconhecidos que povoam os nossos computadores, trilhões de amigos que vemos quotidianamente mas que não têm realidade alguma para nós”.

Há, além disso, um Brasil mais denso, o da canção Aos nossos filhos, de Ivan Lins e Vítor Martins, celebrizada por Elis Regina. Maria fez um documentário sobre a repressão e a amnistia no Brasil, o premiado Reparem Bem, e quis integrar a canção no disco como “homenagem à [militante brasileira] Denise Crispim e à sua filha Eduarda, que são as protagonistas do filme, porque a canção tem tudo a ver com a história delas”. Conta Maria de Medeiros que, no final de uma projecção desse documentário em Espanha, “uma jovem levantou-se e insistiu em falar”: “Bonita, morena, toda a gente a identificou como brasileira. Estava muito emocionada, a chorar, e quando conseguiu finalmente falar, disse: ‘Identifiquei-me muito com este filme porque eu sou iraniana’. Aí, Maria deu-se conta de que “a luta pela liberdade, contra a repressão, é totalmente actual e universal”: “São coisas que continuam, mesmo fora de situações de ditadura, e pelas quais temos sempre boas razões para pedir desculpas aos nossos filhos.”

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