Papa dá às “periferias” um pouco mais de peso no Colégio dos Cardeais

Francisco começa a imprimir a sua marca no Vaticano. Dos 16 novos eleitores que este sábado recebem o barrete cardinalício, dois vêm de países que nunca tinham tido um cardeal.

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Francisco quer "exprimir a universalidade da Igreja”, diz o cardeal José Saraiva Martins Max Rossi/Reuters

Em quase um ano de pontificado, Francisco deu muitos sinais do que pretende para a Igreja Católica, mas poucos foram até agora tão concretos como a escolha dos novos cardeais: dos 19 que neste sábado recebem o barrete e o anel cardinalícios, dez vêm do Sul, dois deles de países, o Haiti e o Burkina Faso, que estão entre os mais pobres do mundo e que nunca tinham tido nenhum bispo entre os chamados “príncipes da Igreja”.

“Vindos de 12 países de todas as partes do mundo, representam a profunda relação eclesiástica entre a igreja de Roma e as igrejas através do mundo”, disse o Papa quando, a 12 de Janeiro, revelou na Praça de São Pedro as suas primeiras escolhas para o colégio cardinalício – nomeação que, escreveu na carta que enviou aos novos cardeais, “não significam uma promoção, uma honra ou uma condecoração”, mas “um serviço que exige uma visão mais ampla e um coração maior”.

A maioria das nomeações era esperada – caso dos quatro que são membros da Cúria, incluindo o novo secretário de Estado, Pietro Parolin –, ou não causou surpresa. Foi o que aconteceu com Orani João Tempesta, o arcebispo do Rio de Janeiro e organizador das Jornadas da Juventude que, em Julho, proporcionaram a Francisco os seus primeiros grandes banhos de multidão.

Mas o Papa que veio “do fim do mundo” e que quer uma “Igreja pobre para os pobres” começou já a imprimir a sua marca no colégio que, além de o aconselhar e auxiliar no governo da Igreja, será um dia responsável por eleger o seu sucessor. Dos 16 novos eleitores (os que têm menos de 80 anos), cinco são oriundos da América Latina e das Caraíbas, dois de África e dois da Ásia.

“A Igreja de hoje é feita de muitas nações e culturas, não é já a Igreja europeia dos séculos passados, e o colégio cardinalício precisa de reflectir essa realidade”, escreveu Thomas Reese, analista do National Catholic Report (NCR). Não foi assim com Bento XVI, que, invertendo a tendência dos antecessores, aumentou a quota de cardeais europeus – só os italianos eram um quarto do conclave que elegeu Francisco, mais do que toda a América Latina, onde estão 40% dos católicos do mundo.

“O Papa Francisco quer exprimir a universalidade da Igreja”, diz ao PÚBLICO o cardeal José Saraiva Martins, um dos três portugueses presentes no consistório convocado por Francisco para criação de cardeais. Citando como exemplo o facto de pela primeira vez o Haiti ter um cardeal, o prefeito emérito da Congregação para a Causa dos Santos diz que as nomeações espelham a “preocupação” do Papa em mostrar que a Igreja “é universal” e deve “estar representada não só na Europa”, mas também noutros continentes.

Ouvir a voz dos mais esquecidos
As nomeações que hoje se oficializam, dizem os observadores, confirmam a aposta do Papa nas “periferias”, não apenas as da geografia, mas também as da geoestratégia e da economia.

“O Burkina Faso é um dos mais pobres e devastados países de África e esta escolha foi feita para que no colégio se ouça a voz de uma das partes mais esquecidas do mundo, vinda não do terceiro, mas do quarto mundo”, disse ao jornal católico Observer o teólogo e historiador norte-americano Lawrence Cunningham. Com a nomeação do arcebispo de Ouagadougou, acrescenta, o Papa quer dar força à mensagem de que “a Igreja existe para servir e ser testemunha do amor de Deus e que isso é especialmente importante em países onde o amor está mais ausente”.

Philippe Ouedraogo também foi surpreendido. Em entrevista à agência de notícias do país, que as Nações Unidas classificam como o terceiro mais pobre do mundo, o arcebispo de 69 anos contou que, quando lhe telefonaram de Roma, pensou que se tratava de uma partida: “Sou apenas um pastor da savana do Burkina que tenta fazer o seu trabalho e ajudar no que pode.” Mas em Ouedraogo, o Burkina tem mais do que um pastor, escreve o Le Jeune Afrique, que descreve o arcebispo como “uma figura ascendente do episcopado africano, conhecido pela sua coragem quando se trata de afrontar o poder político”. O NCR recorda a homilia do último Natal, em que o arcebispo denunciou “o punhado de cidadãos que detêm grande parte da riqueza” de um país “caracterizado pelas desigualdades, a injustiça e a miséria” e lamentou as guerras fratricidas que arrastam África “para o tribalismo, os regionalismo e a intolerância religiosa”.

Nesta colheita de “cardeais-coragem”, a revista de assuntos africanos inclui também Jean-Pierre Kutwa, o arcebispo de Abidjan que foi mediador na guerra civil que, em 2011, dividiu a Costa do Marfim, provocando mais de três mil mortos, e que tem dado sinais de abertura em relação à população muçulmana do país.

É também neste esforço de aproximação às periferias que é lida a nomeação de Chibly Langlois, o primeiro cardeal haitiano. Além de ser o mais novo dos nomeados (tem 56 anos), o bispo de Les Cayes é descrito como um líder comprometido com o combate à pobreza no país, que o devastador sismo de Janeiro de 2010 tornou ainda mais alarmante.

“Vivemos numa sociedade cheia de dificuldades económicas. E a Igreja não é extraterrestre, faz parte dessa realidade”, disse à AFP o novo cardeal, que se tem empenhado na criação de escolas para as crianças mais pobres (uma grande fatia dos 1,5 milhões de haitianos que foram desalojados pelo sismo) e em servir de mediador no diálogo entre as facções políticas do país – “Não queremos uma crise que nos leve a chorar de novo pelos mortos.” A Roma, Langlois quer levar “a realidade da Igreja do Haiti”, uma igreja “jovem e dinâmica, mas cheia de limitações no plano financeiro e que precisa da solidariedade de outras”.  

Esta é, no entanto, apenas a primeira das oportunidades que Francisco terá para moldar o colégio à imagem da sua visão da Igreja, sublinha Thomas Reese, lembrando que até 2016 outros 26 cardeais vão atingir os 80 anos, o que deverá permitir ao Papa mudar em pouco tempo mais de um terço dos cardeais eleitores – a regra vigente, a que o Papa não precisa de se ater, prevê um limite de 120. Com Maria João Lopes

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