Sochi é na Rússia, mas não é Rússia

O povo russo aos olhos do mundo é resumido a um bêbado que não trabalha, que passeia na linha da legalidade com o seu passo ébrio e com uma despreocupação de quem nunca irá provar uma ressaca

Foto
Eric Gaillard/Reuters

As fotos de Sochi já não retratam nada de novo, as caricaturas humanas a fingir serem atropeladas e a troca de punhos posterior, os incrivelmente embriagados e as suas aventuras, os improvisos e soluções que parecem criar mais um problema do que resolvê-lo, já testemunhavam na Internet a natureza improvável russa.

O povo russo aos olhos do mundo é resumido a um bêbado que não trabalha, que passeia na linha da legalidade com o seu passo ébrio e com uma despreocupação de quem nunca irá provar uma ressaca.

Estou na Rússia há mais de seis meses. Confesso que a imagem acima era a imagem com que vim. Porém, e ainda bem, alterou-se. Forçando conversas um pouco sensíveis e testemunhando em primeira mão consegui desenhar um rosto russo mais delineado, com contornos antes desconhecidos.

Muito se fala e especula sobre o Presidente Vladimir Putin. Esta figura aparece como central e com um certo culto à imagem. Coisa perigosa, pois todos aqueles que o fizeram na história não o fizeram por boas razões. Mas as razões pelas quais o povo russo o permite é pela simples razão de hábito. Não me interpretem mal, não estou a dizer que o povo russo simplesmente gosta de estar nas mãos de um único homem. O povo russo porém conhece o seu tamanho, o que para nós, pequeno Portugal, é uma noção que transcende a nossa consciência. Sendo o maior país do mundo em termos geográficos e com uma grande variedade de povos, com história e culturas diversas, a Rússia necessita união. Ora, essa necessidade é de extrema importância para a continuação deste “maior país do mundo”, e quem está no poder terá que ser uma figura forte para aguentar as rédeas de tantos cavalos. Pois é certo que mais tarde ou mais cedo algum dará um coice por não querer puxar mais a carroça. Os casos terroristas em Volvogrado são um infeliz exemplo.

A figura de homem forte, activo e atlético não é só a de Putin como também o do homem ideal russo. Não esquecendo a sua capacidade de aguentar o álcool e frio extremo. O álcool aqui é para celebrar, tudo. Num Inverno que não deixa passear mais que vinte minutos sem te congelar os dedos dos pés, por mais meias e botas quentes que se leve (o meu máximo foram quatro meias de lã e umas botas com pêlo no interior), o convívio entre as pessoas limita-se ao local de trabalho. Mas quando é Sexta, é para aterrar. E quando digo aterrar, digo-o literalmente. Já conto por mais dedos de uma mão os que vi cair na neve, cabeça primeiro. Mulheres inclusive, que não largam os saltos altos, e que caminham pelo gelo soluçando vodka. Para ajudar, os supermercados não vendem bebidas alcoólicas depois das dez horas. Por isso antes dessa hora já conseguimos ver autênticos zombies que invés de procurarem cérebros procuram álcool e falam russo pela rua.

Os improvisos e soluções perigosas são de facto uma constante, pelo simples raciocínio “se funciona está bom”. A janela da minha varanda não abre, solução do meu senhorio — “não abra a janela”, e pronto. Isto é um contraste enorme quando se chega mais próximo ao dia-a-dia russo. Têm um dos mais eficientes meios de transportes públicos, com autocarros eléctricos (alimentados por cima) e eléctricos como os de Lisboa mas maiores e que vão mais longe, cujos bilhetes são 35 cent.. Os táxis estão à distância de uma sms ou de uma simples chamada que te indica a matrícula e o tempo de espera. Os bares batem em termos de design os europeus, com campainhas electrónicas nas mesas com botões para pedir, informações e ou o recibo. A Internet fica no router e ao se mudar de casa basta levar o router que se tem acesso, por apenas 10 euros ao mês. Os tarifários de comunicação normal, e até abusiva, não passam dos 5€. A preocupação desportiva latente na presença de parques de treino físico em todos os bairros contrasta com a negligência em tantos outros aspectos.

Mas Sochi foi falta de preparação. Mas não se deixem enganar pela imagem pintada por jornalistas que passam duas semanas num sítio que não reflecte de todo a realidade russa.

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