Família de doente que teve AVC no metro só foi avisada no dia seguinte

Hospital responde que a regra é esperar que algum familiar apareça até ao final da hora de visita do dia seguinte, a não ser que o doente morra ou precisem de algum dado da sua história clínica. Doente tinha consigo agenda com contactos de urgência.

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Doente tinha consigo agenda com contactos de urgência Fernando Veludo/NFactos

O pai de Catarina Furtado tem 73 anos, vive sozinho desde que enviuvou, falam com regularidade. Por isso, estranhou que nesse dia ele não atendesse de casa e que durante todo o dia tivesse o telemóvel desligado. Continua activo, a exercer advocacia, podia ter estado num julgamento e ter-se esquecido de o voltar a ligar. Na manhã seguinte foi até sua casa e não estava lá. Pensou que talvez tivesse sido roubado, raptado, foi verificar se tinha havido levantamentos de dinheiro, mas nada. Foi então que se pôs a ligar para hospitais, começou pelo Santa Maria, em Lisboa, o pai não estava lá, ligou para o Santa Marta, disseram-lhe que estava lá, mas não era bem assim, afinal estava no São José. O pai tinha tido um AVC no metro e estava internado “em estado crítico” há quase 24 horas.

O gabinete de comunicação do Centro Hospitalar de Lisboa Central respondeu ao PÚBLICO que “se dá prioridade absoluta ao tratamento” e que, como o doente tinha documentos que permitiam identificá-lo, a regra é esperar que algum familiar apareça até ao final da hora da visita do dia seguinte ao internamento. Caso ninguém apareça, tentam então contactar a família. A excepção só acontece se o doente tiver morrido ou se precisarem de informação clínica, refere-se.
 
Tudo aconteceu de dia 22 para 23 de Janeiro. Catarina Furtado pensou que, ao menos, tinham tentado contactá-la e que não tinham conseguido. Talvez o pai tivesse o telemóvel desligado e não tivesse o código à vista. Mas já depois de ele estar internado pediu para ver o seu “espólio” e ali estava a agenda do pai, logo na primeira página, “‘em caso de urgência contactar’ e o meu nome e telemóvel”. É filha única.

Percebeu que o hospital é escrupuloso na separação dos haveres do doente, que num saco colocam a roupa e noutro pertences mais pequenos. A pessoa que separou os bens em dois tirou a agenda do bolso do casaco do pai, onde ele sempre a transporta, e colocou-a no saco sem sequer pensar em abri-la, diz a filha.
 
Catarina Furtado diz que nada tem a assinalar em termos da assistência clínica prestada ao pai, que entrou pela Via Verde AVC, mas lamenta que não tenha havido “quaisquer diligências por parte do hospital em contactá-la”.
Ninguém nas urgências lhe soube dizer como e onde tinha sido encontrado o pai, disseram-lhe apenas que tinha sido levado pela corporação de bombeiros do Beato. Foi lá que soube que foi encontrado no metro, na estação do Intendente, e que houve alguém que ligou para o 112 às 13h53, às 14h30 foram buscá-lo. Deu entrada no hospital às 14h39. Voltou a ver o pai no outro dia às 15h00. Estava em coma.
 
Informarem-na de que não era regra contactar os familiares em caso de urgência, que “é a família que tem que procurar”, levou-a a apresentar queixa no Gabinete do Utente do hospital de São José, na Provedoria de Justiça e vai fazê-lo também junto da Inspecção Geral das Actividades em Saúde.
 
“É uma questão deontológica, de humanização. Não sei quanto tempo eles iam esperar para me dizerem”. O gabinete de comunicação informa que “se o doente estiver identificado, como era o caso, aguarda-se pelo final do período de visita subsequente à hora de entrada do doente no internamento (das 15h-20h)”. Ou seja, só depois das 20h00 iriam tentar contactá-la.

Na resposta do gabinete de comunicação do Centro Hospitalar de Lisboa Central (que inclui São José, Santa Marta, Capuchos, Estefânia, Curry Cabral e Maternidade Alfredo da Costa) escreve-se que “pode efectivamente suceder que a prestação de cuidados condicione temporalmente o contacto e a prestação de informação sobre os mesmos - iremos procurar melhorar o procedimento actualmente existente, identificando soluções que melhorem a comunicação no respeito da privacidade do doente”.
 
Manuel Vilas Boas, porta-voz do Movimento de Utentes do Serviço Nacional de Saúde, estranha a resposta do hospital. “Quando um utente é internado tem que ser identificado mas depois têm que se preocupar em contactar alguém, as pessoas não podem ser abandonadas”. “É um absurdo do Sistema Nacional de Saúde que revela falta de sensibilidade na prestação do socorro”.
 
A subdirectora-geral de Saúde, Graça Freitas, esclarece que não existe um protocolo nacional que uniformize as regras para contacto de familiares a nível nacional. A responsável não se pronuncia sobre o caso em concreto, nota que “estas regras são definidas pelos hospitais, cada unidade tem os seus procedimentos administrativos e técnicos". "Os hospitais têm formas de funcionar diferentes e meios diferentes”, diz.

O responsável pelo Departamento de Qualidade em Saúde da Direcção-Geral de Saúde, Alexandre Diniz, responde por email que “este tipo de regras faz parte integrante da formação básica dos profissionais de saúde, do seu processo de integração nas unidades de saúde e é regulado pelas administrações das instituições prestadoras de cuidados de saúde”. Mas, ressalva que, tal como vem referido na norma da DGS sobre consentimento informado, que está em discussão pública, “as decisões sobre a saúde de uma pessoa que careça de capacidade de decidir, obrigam, independentemente de ser tentado o seu envolvimento, à obtenção de autorização do seu representante legal, de uma autoridade ou de uma pessoa ou instância designada por lei.”

O hospital responde ainda que se nenhum familiar tivesse aparecido até ao final da hora da visita iniciavam-se então “as diligências no sentido de apurar no seu espólio contactos telefónicos de familiares/ pessoas próximas - e se não existirem telefones, procura-se através da sua morada. Se ainda assim não se conseguir, recorre-se à colaboração das entidades policiais da área de residência”.
 
O pai de Catarina Furtado foi entretanto transferido para outro hospital. Saiu de coma mas tem o lado direito do corpo paralisado e não consegue falar, ele a a filha comunicam por expressões faciais.

 
 
 

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