O que é que o cavaquinho tem? Uns 200 milhões de fãs em todo o mundo

Três décadas depois do LP Cavaquinho, Júlio Pereira volta ao instrumento com um novo disco, um site e uma associação. Tudo isto é oficialmente lançado esta segunda-feira.

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Júlio Pereira © ANTÓNIO GAMITO

Chama-se cavaquinho mas também machete, braguinha, ukulele, keronkong, consoante os países, as tipologias ou até as afinações deste pequeno tetracórdio. Nas suas origens será português, minhoto, mas foi a partir do Havai (EUA), como ukulele, que teve a sua maior expansão pelo mundo. Porquê falar dele agora? Porque Júlio Pereira, o músico que o glorificou num disco, em 1981, trazendo-o para o campo da nova música portuguesa, voltou três décadas depois ao lugar do “crime”. Já não apenas com uma única arma, mas com um verdadeiro arsenal.

Cavaquinhos.pt, o novo disco, traz até aos nossos ouvidos não apenas a sonoridade, arejada, de tal instrumento, como também pistas para o seguir pelo mundo. Com o disco surgem um site e uma associação. E tudo isto é lançado hoje, no CCB, em Lisboa.



Como nasceu esta ligação de Júlio Pereira ao cavaquinho? Foi em 1979, recorda ele. “Andava com o Pedro Caldeira Cabral a passear na Costa do Castelo e vimos uma loja de instrumentos, mesmo em frente às antigas Mónicas, onde estavam dois cavaquinhos pendurados, 900 escudos cada um [4,5 euros, em conversão directa]. Comprámo-los. Nunca tinha visto um cavaquinho assim de perto”. Mas não ficaria pela curiosidade. Ao trabalhar com José Afonso, este incentivou-o a tocar o cavaquinho com ele. “Por causa de um arranjo para uma das músicas que ele andava a fazer para a peça Zé do Telhado, da Barraca, comecei a tocar cavaquinho. Nos ensaios, já para concertos, vimos que ficava ali bem. E, com o Zeca, mais lá fora do que aqui, nunca deixei de tocá-lo.” Era, ainda, o mesmo instrumento que comprara. “Do mais rudimentar, do mais básico, que se possa imaginar. Chegou a ganhar um buraco de tanto tocar”. Só depois comprou outros (tem vários, no seu estúdio), cimentando nessa busca a paixão pelo instrumento. “Isso foi por tocar muito. Dei-me conta de que, sobretudo lá fora, lembro-me por exemplo da tournée com o Zeca na Alemanha, as pessoas chegavam a levantar-se a bater palmas quando eu tocava cavaquinho porque era uma coisa completamente fora do comum.”

É isso que o leva, em 1981, ainda com o tal instrumento que comprara por 900 escudos, a gravar o LP Cavaquinho, um disco totalmente instrumental que lhe deu definitiva notoriedade e, como ele diz, definiu a sua carreira como instrumentista. Depois dele, gravaria discos dedicados a outros cordofones, como Braguesa, em 1983, ou O Meu Bandolim, em 1992, entre tantos outros onde explorou diferentes sonoridades.

Azar que trouxe sorte
Coisa que, no passado, já havia feito. Nascido em Moscavide, Lisboa, a 22 de Dezembro de 1953 (completou 60 anos há menos de um mês), Júlio Pereira começou a tocar banjo e bandolim aos 8 anos, ensinado pelo pai. Depois aprendeu viola e viola eléctrica e seguiu o caminho dos jovens candidatos a músicos da época, em grupos como The Play-Boys, Xharanga e depois os Petrus Castrus, participando na gravação do álbum Mestre. Já depois do 25 de Abril de 1974, o contacto com muitos cantores emergentes fê-lo gravar dois discos onde reuniu uma legião de músicos, cantores e até actores: Fernandinho Vai Ao Vinho, 1976 (ele chama-se Júlio Fernando de Jesus Pereira), e Lisboémia, 1978. Depois da descoberta do cavaquinho, seguiram-se novas experiências, que passaram por mais discos de originais, novas colaborações com outros músicos (The Chieftains, Kepa Junkera, João Afonso) e, mais recentemente, Geografias (2007) e Graffiti (2010).

Tudo isso antes de voltar ao cavaquinho, trinta anos depois do disco inicial. Queria editá-lo logo em 2011 mas não conseguiu. Azar que lhe trouxe sorte. “Por causa da dificuldade que foi editar há dois anos, comecei a meter-me na net e felizmente que existe net, porque senão nem eu nem ninguém podia ter noção do que está realmente a acontecer. Como é que eu podia imaginar que havia mais de 200 grupos de cavaquinho no país, continente e Madeira? E a quantidade de construtores que existe? E tocadores? E locais de ensino?”

Mas a busca não começou logo pelo cavaquinho propriamente dito. “Comecei a estudar o ukulele, que se tornou moda, toda a malta da pop faz temas com ele. Creio que visitei uns 1600 sites. E dei-me conta que no mundo referem sempre os portugueses como estando na origem do ukulele. Mas não conhecem, de facto, porque as fotografias que aparecem são mal legendadas, as informações não incompletas, e isso começou-me a picar. E então comecei a construir paulatinamente um site internacional dos cavaquinhos. E à medida que o fui fazendo fui vivendo coisas. E comecei a viajar através do país. Um dia fui a Vila Verde visitar uns amigos e, quando ia a passar numa terra a três quilómetros, fui procurar um construtor que eu tinha visto na net. Bati à porta e aparece-me um homem que diz ‘Era o meu pai, mas já morreu. Mas se quiser ver o espólio dele…’ Fui ver e então deparei-me com 34 modelos diferentes de cavaquinhos que ele construiu, todos muito bem organizados, em armários de vidro. O construtor, que ninguém conhece porque não tinha loja aberta, chamava-se Lourenço Alves de Sousa. O filho, perante o meu interesse, disse-me que eu podia ir a Vila Verde procurar ‘pelo Russel’. Lá fui e, em casa do Russel, vejo mais 31 modelos diferentes de cavaquinhos. Eu não queria acreditar: em apenas três quilómetros vejo 65 modelos diferentes de cavaquinhos?”

Com a descoberta ainda a bailar-lhe na cabeça, imergiu no YouTube. “Conclusão: fui dar com uma comunidade gigantesca no país, até no Alentejo, o lugar mais improvável.” Uma comunidade gigantesca, mas totalmente desorganizada. “Isso entusiasmou-me a tal ponto que a edição do disco demorou muito tempo, até agora, porque andei a fazer o site (cavaquinhos.pt) e a associação (Associação Cultural e Museu Cavaquinho), porque um património destes já implica um trabalho que não pode ser feito só por mim.”

Comunidade gigantesca
Site e associação exigem, como exigiram até agora, muito trabalho. Oficialmente, junto com o novo disco de Júlio Pereira (que se chama Cavaquinho.pt) serão mostrados hoje à imprensa no CCB, em Lisboa, ao final da tarde, com apresentação de Rui Vieira Nery. Bilingue, em português e inglês, o site promete inventariar “os construtores, os instrumentos, os músicos, os grupos” (vai abrir, diz Júlio Pereira, com “140 modelos diferentes de cavaquinhos e editados um a um”). E mostrar ainda “fotos, vídeos, técnicas, afinações, acordes e ligações ao mundo – uma comunidade que ascende os 200 milhões de pessoas.” E isto com secções dedicadas a Portugal, Cabo Verde, Brasil, EUA, Indonésia e Mundo. “São portas abertas", diz Júlio Pereira, "para que toda esta comunidade mundial se possa encontrar, porque no site está tudo devidamente organizado. Os construtores daqui podem estar a contactar com os construtores do Brasil, de Cabo Verde, da Indonésia, do Havai, de todo o lado.”

Notícia alterada às 20h40: onde erradamente se escreveu "Horácio", devia ler-se, como se lê agora, "Russel" (Nuno Russel, construtor de cavaquinhos).
 

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