“A surpresa de escutar uma sinfonia ao piano não devia ser assim tão grande”

O pianista italiano Giovanni Bellucci, que alia o virtuosismo técnico a um conhecimento profundo de obras musicais de grande fôlego, toca este domingo, às 17h, no CCB, em Lisboa.

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Tocar as nove Sinfonias de Beethoven nas transcrições para piano de Franz Liszt é um projecto ambicioso que muito poucos intérpretes se têm atrevido a afrontar, mas que parece não intimidar Giovanni Bellucci, que tem em curso uma gravação (Warner Calssics) que coloca em paralelo as Sonatas e as Sinfonias do grande compositor alemão.

Este domingo, às 17h, Bellucci inicia um ciclo no CCB, que se irá estender ao longo da temporada (com recitais a 20 de Abril, 12 de Outubro e 21 de Dezembro), e que dará a ouvir em Portugal as versões que Liszt realizou das Sinfonias de Beethoven com o intuito de as levar a um público mais amplo, mas também de mergulhar a fundo na sua linguagem, aproveitando as crescentes possibilidades técnicas e expressivas dos pianos oitocentistas.

“O meu propósito foi alcançado se consegui ficar ao nível de um gravador inteligente ou de um tradutor consciencioso, que, compreendendo o espírito da obra original, contribuem para o conhecimento dos grandes mestres e para a formação do sentido do belo”, escreveu Liszt, em 1865, numa carta enviada de Roma.

Beethoven e Liszt têm sido assíduos companheiros de viagem de Giovanni Bellucci (n. 1965), que dedica o recital de hoje às Sinfonias nº 1 e nº 5. Com um percurso invulgar, Bellucci começou a tocar piano aos 14 anos como autodidacta, mas pouco tempo depois já tocava as 32 Sonatas de Beethoven e aos 16 anos fazia a sua primeira apresentação pública com orquestra, interpretando a Dança Macabra, de Liszt. Com uma discografia amplamente elogiada pela crítica e actuações nas mais prestigiadas salas de concerto do mundo, é actualmente considerado um dos mais destacados intérpretes de Liszt.

Poucos pianistas têm abordado o ciclo das Sinfonias de Beethoven nas transcrições de Liszt. O que o levou a lançar-se nesse desafio?

A ideia nasceu em conjunto com a interpretação e gravação das 32 Sonatas para Piano de Beethoven. Achava que teria muito a ganhar na abordagem das Sonatas, se tivesse ao mesmo tempo um conhecimento profundo das nove Sinfonias, não apenas como ouvinte mas através da sua interpretação ao piano. Esta era também a ideia do grande pianista, intelectual e compositor italiano Ferruccio Busoni no final do século XIX. Para encontrar a chave para poder interpretar um compositor tão complexo como Beethoven, era preciso conhecer a fundo a sua obra, ler muito e tocar muito as suas composições, incluindo as transcrições de Liszt. Trata-se de uma forma de alimentar o conhecimento e a imaginação do intérprete.

De que forma esse estudo paralelo das Sonatas e das Sinfonias influenciou as suas interpretações de ambos os géneros musicais?

Muitos intérpretes interessam-se, sobretudo, pelo meio através do qual se exprime o som. Eu interesso-me mais pela ideia abstracta da composição. Beethoven era pianista e concebeu a sua obra ao piano, mas a sua poética e linguagem exprimem-se muitas vezes independentemente do meio utilizado. Por exemplo, muitas obras para piano e diversas sinfonias têm um início ligado a um incipit [primeiras notas da partitura] de forte identidade. A música parece iniciar um percurso com um primeiro passo, mas depois pára e a seguir recomeça o trabalho de estruturação da forma pela qual a arte de Beethoven se exprime. É o caso da Sinfonia nº 5 ou das Sonatas Hammerklavier e Apassionata. Beethoven exprime-se com frequência através de rupturas e de um discurso aparentemente fragmentário, que soa quase como se fosse improvisado. Como disse o filósofo Emil Cioran, Beethoven corrompeu a música porque lhe introduziu as mudanças de humor e a cólera. Estes aspectos humanos estão presentes quer nas Sinfonias, quer nas Sonatas, e o piano é provavelmente o instrumento mais adequado para os traduzir. A surpresa de escutar uma Sinfonia ao piano não devia ser assim tão grande.

Até que ponto encontramos a marca de Liszt como compositor nas transcrições que fez das Sinfonias de Beethoven?

A palavra transcrição não é a mais adequada, deveríamos antes usar o conceito de tradução. Se lermos um poema português numa tradução italiana que segue literalmente o texto, trata-se de uma traição terrível. Liszt trai de outro modo. Ele sabe muito bem que um dado golpe de arco ou um efeito em vários registos da orquestra não têm uma tradução literal no piano, mas procura compreender o seu papel na construção de uma imagem complexa do som e da sobreposição dos planos sonoros. Liszt foi aluno de Carl Czerny, que tinha sido aluno de Beethoven. Não era só o compositor romântico, o virtuoso visionário, no sentido que lhe damos hoje. Era um músico nascido numa família austríaca de língua alemã, que estudou com Czerny e que foi o primeiro intérprete da Sonata Hammerklavier num concerto público, objecto de uma recensão de Berlioz que refere a fidelidade absoluta ao texto de Beethoven. Berlioz seguiu pela partitura, pois tinha a curiosidade de ver se Liszt era um intérprete tão notável como diziam, e ficou surpreendido pela sua proximidade em relação à figura de Beethoven.

Actualmente há ainda um certo preconceito em considerar as transcrições como “verdadeiro” repertório...

Sim, são vistas como uma cópia, como se se tratasse de admirar um quadro falso. No entanto, não percebo porque é que ninguém se escandaliza quando escuta a transcrição para piano de La Valse, de Ravel, ou a orquestração dos Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky, mas ficam perplexos com a ideia de uma Sinfonia de Beethoven tocada ao piano.

Qual das versões de Liszt das Sinfonias de Beethoven considera mais conseguida?   

As Sinfonias de Beethoven apresentam grandes diferenças entre si, pelo que a tarefa de Liszt não era nada fácil. A densidade de escrita é muito complicada, especialmente na Nona Sinfonia. Nas primeiras oito Sinfonias, os problemas são muitas vezes objecto de soluções extraordinárias. Por exemplo, a Quinta Sinfonia é uma obra em que a disposição da orquestra e a colocação dos instrumentos no espaço é fundamental, pois a composição nasce de uma só célula que se apresenta de maneira obsessiva e imprevisível, umas vezes a partir de um violino, outras no clarinete, outras na trompa... Isto no piano é impossível, mas Liszt contornou o obstáculo através do uso de outros parâmetros. Reinventou uma parte do final, e alguns elementos de virtuosismo servem para recriar o impacto e a potência da orquestra. Na Sinfonia Pastoral, a longa duração das linhas sonoras é obtida através de um uso quase pré-impressionista do pedal de ressonância, enquanto a Sinfonia nº 7 surge como uma peça de carácter extremamente pianístico. A Sinfonia mais utópica numa versão para piano é a Nona, devido à sua complexidade e à presença das massas corais.

De que modo estas obras reflectem o desenvolvimento do piano no século XIX?

O público dos concertos sinfónicos oitocentistas não conhecia as Sonatas de Beethoven. São raras as que foram executadas em concertos públicos durante a vida de Beethoven; eram tocadas nos salões. Liszt inventou a fórmula do concerto-recital, dizendo ao mundo “Le concert c’est moi”. Teve a ideia de levar o piano para os grandes teatros e de construir um repertório adaptado ao palco em vez do salão. Era preciso um outro género de arte, mais potente, mais exteriorizada e adaptada a poder envolver uma plateia. Com a transcrição para piano da Sinfonia Fantástica de Berlioz, Liszt inaugurou uma nova história do piano, que se começou a converter num instrumento para deslumbrar as massas.

Começou por ser um autodidacta do piano. Tem mantido esse espírito ao longo da sua carreira, ou a influência dos professores e de outros intérpretes é igualmente importante?

A palavra autodidacta é, por vezes, vista de forma depreciativa, mas, na verdade, tem uma importância notável. Quem é que hoje se recorda dos nomes dos professores de Beethoven ou de Chopin? Se o talento ou a capacidade artística se manifestassem apenas através do saber recebido, ou das aulas de determinado professor, seria fácil para qualquer pessoa ser um Beethoven ou um Chopin. Em tempos fizeram-se experiências com o fim de obter o que poderia ter sido a 10ª Sinfonia de Beethoven. Foi usado um programa de computador para analisar todas as Sinfonias precedentes, e o processo de composição de Beethoven foi estudado em laboratório. O resultado foi horrendo! A intuição, a vertente irracional, as características pessoais, o talento têm uma função específica no processo que leva alguém a tornar-se músico que está para além do estudo. Pensemos no desporto. A diferença entre um jogador de futebol normal e o Maradona não está só no número de horas que passa a treinar nem vem dos treinadores que os orientam. O estudo sério com grandes músicos que sabem seguir o trabalho e utilizá-lo em função da arte é fundamental, sobretudo para os mais jovens, mas há muito mais do que isso. A personalidade artística não decorre do número de horas que alguém passa a exercitar-se em escalas e arpejos.
 
 
 
 
 

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