Os comboios dos que sonham

Passava-se que, continuava ele num tom piedoso, os jovens estudantes tinham sonhos a mais. Uma vez que os sonhos são leves e pouco densos, e há muitos por carruagem, é fácil prever os desfecho

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mitopencourseware/Flickr

Anda tudo louco. E prova disso é o comboio em que agora viajo.

Após aclarar a garganta, o maquinista anunciou aos tripulantes, pelo altifalante distorcido, que, devido a problemas técnicos, o presente comboio estava a levantar voo. A verdade é que eu já tinha reparado que, lá pelo meio do percurso, a viagem estava a ficar estranhamente silenciosa, mas nunca concebi que a locomotiva estivesse agora a largos metros do chão, pela altura das copas das laranjeiras mais graúdas.

Não me parecia justo ter pago um bilhete para um pacato transporte ferroviário e andar agora feito Dumbo, pelo céu laranja-fim-de-tarde algarvio. O Pica veio fazer a ronda, como de costume. Nem foi tarde nem foi cedo e ataquei-o com a pergunta: mas porque raio é que o comboio está a viajar em pleno espaço aéreo português? Na voz calma de Pica, como de costume, ele explicou-se muito bem. Final das férias de Natal. Ao que parece, a dita locomotiva ia cheia de jovens estudantes. Uns disto, uns daquilo, mas, de uma forma geral, havia uma concentração excessiva de universitários por carruagem. Com alguma comiseração, explicou-me também que antes o volume de estudantes por carruagem era apertadamente controlado, precisamente para evitar este tipo de incidentes. Mas desde que deixara de existir desconto para jovens, o bilhete passara a ser vendido sem distinção. Agora, era o que se via. Era vê-los a entrar aos bandos em cada apeadeiro, com malas cheias de comida caseira e roupa lavada.

Passava-se que, continuava ele num tom piedoso, os jovens estudantes tinham sonhos a mais. Uma vez que os sonhos são leves e pouco densos, e há muitos por carruagem, é fácil prever os desfecho. É como os balões da feira. E quanto mais novos, pior. Uma vez, em Setembro, uma carruagem de caloiros teve de ser repuxada por caças da Força Aérea, para não sair de órbita.

Eu perguntei-lhe ainda, porque é que estavam jovens a saltar do comboio em pleno andamento e, lá está, em pleno voo. Via-os a passar, pela janela do meu lugar 95, carruagem 22. Ele ainda sorriu, antes de responder.

Sabe, eles não estão a saltar, estão a ser atirados pelo pessoal da empresa. É para ver se isto volta a descer. E você, com tanta pergunta é capaz de ser o próximo. Cale-se, deixe-se ficar sentado, e desfrute a viagem. Picou o bilhete, e seguiu caminho.

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