O tempo e a política

É sabido que a humanidade viveu várias concepções do tempo ao longo da sua História. Para os gregos, que acreditavam na reencarnação, o tempo processava-se por ciclos, o que quer dizer que, terminado um período, tudo voltava ao princípio. Outras civilizações antigas chegaram mesmo a admitir que no fim de cada ciclo se instalava o caos, do qual iria nascer uma nova ordem. Foi este recomeçar do tempo que Nietzche popularizou com o conceito de “eterno retorno”.

O cristianismo, pela mão de São Paulo e de Santo Agostinho, iria introduzir um novo imaginário: o tempo linear, que, tendo começado com a Criação, iria colocar a humanidade, após o pecado original e o sentimento de privação que gerou, num percurso que só terminaria no “fim dos tempos” com a remissão do mal e o encontro com o Pai. Nascia assim a historicidade.

Após o Iluminismo e a progressiva laicização das sociedades, manteve-se o mesmo conceito de tempo linear, mas os conteúdos passaram a ser outros. A partir daí, o futuro, necessariamente melhor do que o passado, passou a apontar, não para o encontro com o Pai, mas sim para a concretização de várias utopias como por exemplo o regresso à natureza, imaginada por Rousseau, ou a sociedade sem classes, profetizada por Marx. Nascia assim o “tempo utópico”, que continha em si uma ideia de progresso, mas que iria perder sentido depois das tragédias que abalaram o século XX e que minaram definitivamente a crença nas “grandes narrativas”.

Actualmente, parece viver-se num tempo “espacializado”, fechado num quadro emoldurado, em que o passado, despido de historicidade, foi incorporado no presente pelas tecnologias e pelas montagens cinematográficas ou literárias, e em que o futuro deixou de existir depois da pulverização das utopias. É um tempo repetitivo, uma sucessão de “agoras”, em que predomina o pragmatismo e o individualismo, e no qual deixou de fazer sentido o sacrifício pelas grandes causas.   

Aliás, basta olhar em volta. Carregamos num botão e podemos ter, a exibirem-se para nós em privado, como se estivessem presentes, figuras do espectáculo ou da política desaparecidas há décadas. Ao mesmo tempo, somos bombardeados por uma retórica repetitiva, em que são usadas até à náusea palavras enigmáticas como “orçamento rectificativo”, “deficit”, “reestruturação da dívida”, “programa cautelar”, etc., etc. A ideia de futuro como projecto de sociedade ou como promessa de encontro com utopias, deixou de estar presente na linguagem política para ser substituída por um calendário, também ele enigmático, do género: em “tantos de tal” negociamos a dívida, voltamos aos mercados, ou vemo-nos livres da troika.

Para o cenário do “tempo espacial” estar completo, são claros os sinais de que corremos o risco de ficar sem a última utopia que ainda nos restava: a democracia. Tanto para os optimistas, que pensam, como Churchill, que ela é “o pior regime com excepção de todos os outros”, como para os pessimistas, que acham, como Nelson Rodrigues, que ela “traz à tona a força numérica dos idiotas que são a maioria da humanidade”, a democracia, que chegou a ser associada, com generoso optimismo, ao “fim da história”, dá sinais de lidar mal com um tempo de “perpétuos presentes”. Minada pela falta de ética, pela corrupção, pelo oportunismo e, mais ainda, pela destruição da classe média, a democracia transmite hoje a imagem de que anda à deriva, sem rumo nem soluções.

Neste cenário, é possível prever o que irá acontecer a seguir? É difícil. Mas quando olhamos para o passado próximo, o século XX, e nos recordamos daquilo que os antigos pensavam sobre o tempo – uma eterna alternância entre o caos e a ordem –, não podemos deixar de pensar que podemos estar já a viver um tempo circular e ficamos preocupados. Resta esperar que os nossos políticos e os políticos dos outros tenham a cultura, a lucidez e a coragem necessárias para ter outra ideia de tempo e nos afastem do abismo.

Médico
 
 

Sugerir correcção
Comentar