O corpo ferido do cinema na obra de Steve McQueen

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Bear (1993), obra “de juventude” de Steve McQueen, fundava-se já na mesma prática de exploração do corpo que o seu 12 Anos Escravo agora explora em profundidade

Operando no sentido oposto a Parreno e Huyghe, o cineasta britânico devolve ao ecrã a linguagem do cinematógrafo

A cultura cinematográfica atravessa um processo de transformação extrema. O aparecimento do digital esmagou os formatos analógicos, transformando-os numa espécie em vias de extinção. A pretensa capacidade de maior realismo do suporte digital foi, afinal, uma promessa vã: os cinemas são dominados por avatares e criaturas neo-medievais, cada vez mais longínquos da vida de todos os dias. A multiplicação dos suportes de visionamento (computadores portáteis, tablets ou telemóveis) expandiu o movimento em curso desde os anos 1980 com a introdução do vídeo doméstico, fragmentando a comunidade cinéfila e pondo em risco a existência de salas de exibição. Há ainda a novidade do fácil acesso a programas de edição, que transformou o panorama de consumo abrindo a hipótese de o espectador-consumidor ser, simultaneamente, um produtor (o termo inglês é prosumer, resultado da justaposição de producer e consumer) de conteúdos disseminados em plataformas como o YouTube. Neste panorama, o cinema de outrora parece desaparecer, diluir-se. 

Esta fragmentação está a ser acompanhada por um movimento paralelo no mundo da arte contemporânea que incorpora as franjas da cultura cinéfila. É longa a lista de nomes do mundo da arte que encontram na história do cinema material de trabalho. Pierre Huyghe ou Anri Sala são alguns exemplos de um conjunto de que 24 Hour Psycho — o remake do clássico de Hitchcock por Douglas Gordon que reduz a velocidade original do filme a dois frames por minuto — talvez constitua um dos casos mais notórios. Da mesma forma, e embora continuem a encontrar público e mercado no circuito internacional de festivais, os produtos mais arriscados ou menos sintonizados com a linguagem cinemática dominante parecem ter um espaço cada vez mais reduzido nas salas, mas, inversamente, são cada vez mais projectados em centros ou museus de arte contemporânea. A retrospectiva de Pedro Costa na Tate Modern em 2009 é um dos inúmeros exemplos. Será que o futuro da longa-metragem independente ou de autor reside no abandono da industria cinematográfica e num movimento em direcção ao circuito da arte contemporânea? 

Steve McQueen parece querer remar contra a maré. Não é caso único, Andy Warhol, via Paul Morrissey, tentou incursões semelhantes nos anos 1960 e 1970; comNowhere Boy, de 2009, Sam Taylor-Wood também demonstrou a possibilidade de um movimento contrário, iniciado no mundo da arte e com destino ao circuito do cinema. O sucesso do artista-realizador britânico, a par das características da sua obra, parece colocá-lo, no entanto, num patamar diferente.

Os primeiros trabalhos de McQueen apresentam já as características que viriam a marcar as suas mais recentes longas-metragens, como Fome (2008) e Vergonha(2011), em especial o interesse extremo por uma fisicalidade baseada na politização do corpo. Obras como Bear (1993), em que dois negros se opõem num jogo de boxe quase ritual, focam-se na mesma prática de exploração do corpo que o novo 12 Anos Escravo, ontem estreado nas salas portuguesas, explora em profundidade. 

O interesse de McQueen no cinema e na sua história começa antes das suas longas-metragens: Deadpan (1997) é uma reencenação da cena icónica de Buster Keaton em Steamboat Bill, Jr (1928) em que uma casa cai em cima do actor-realizador. McQueen parece interessado em criar uma equivalência entre a situação contemporânea do cinema e as suas narrativas enquanto autor. O lado abstracto e imaterial das tecnologias digitais do cinema contemporâneo encontra resistência nas imagens viscerais de corpos, que por sua vez pertencem a personagens marginais, vítimas de opressão, características que podem ser interpretadas como reflexos da falta de visibilidade da própria produção cinematográfica alternativa. 

Se as obras de Pierre Huyghe e Philippe Parreno sublimam o cinema, transformando-o, respectivamente, em imagens vivas e incontroláveis plenas de ficção e em percursos coreografados habitados por fantasmas e espectros, McQueen efectua o movimento contrário, mergulhando na linguagem do cinematógrafo e devolvendo-a ao ecrã.

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