A Austrália ganhou uma selecção e um troféu na Guerra do Vietname

Foi num cenário pouco habitual que a equipa australiana conquistou o primeiro troféu da sua história e lançou as bases da formação que faria a estreia em fases finais do Mundial.

Atti Abonyi marca o segundo golo da Austrália frente à Nova Zelândia
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Atti Abonyi marca o segundo golo da Austrália frente à Nova Zelândia Laurie Schwab collection
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Australianos e vietnamitas no Estádio Cong Hao Patrick Bourke

Vencidos ou vencedores, ninguém ganha com uma guerra. Mas a Austrália até tem boas recordações - no que ao futebol diz respeito - de um dos maiores conflitos armados do século XX. Em Novembro de 1967, a selecção australiana visitou o Vietname, durante a guerra, para disputar um torneio de futebol. A vertente diplomática pesou muito mais do que os aspectos desportivos nesta insólita viagem, mas no regresso a bagagem estava mais rica: a equipa conquistou o primeiro troféu da história do futebol australiano.

Organizar um torneio de futebol numa zona de guerra seria algo de impensável na actualidade. Mas, em 1967, o “torneio da amizade” promovido para assinalar o dia nacional do Vietname do Sul constituiu um exercício de relações públicas para tentar atrair a população para o lado das forças anti-comunistas e melhorar a imagem dos soldados estrangeiros.

Numa selecção que vivera um traumático embate com a realidade - na primeira tentativa de qualificação para o Campeonato do Mundo, a Austrália foi cilindrada pela Coreia do Norte (9-2 no agregado dos dois jogos), que viria a cruzar-se com Portugal em Inglaterra no Mundial 1966 - o novo técnico, Joseph Vlasits, reuniu um grupo de jogadores muito jovens, a maioria deles na casa dos 20 anos. E, se todos tinham noção de que havia uma guerra a decorrer no Vietname, não imaginavam o que iam encontrar.

“Assim que aterrámos em Saigão tornou-se bastante óbvio que estávamos no meio de uma guerra. Havia centenas de aviões de combate na pista. Se bem me lembro, era o aeroporto mais movimentado do mundo”, recordou ao PÚBLICO, por e-mail, Ray Baartz. Na altura um jovem de 20 anos a viver uma aventura única, o futebolista australiano lembra-se que “nunca, em nenhum momento” a equipa se sentiu em perigo. Mas talvez a ingenuidade dos 20 anos impedisse Baartz de ver com clareza coisas que representavam, no mínimo, desafios logísticos. “No primeiro treino, enquanto fazíamos remates à baliza, uma bola foi para longe. Um dos jogadores saltou a vedação para ir buscá-la, mas veio gente de todos os lados a correr para travá-lo. O terreno ao lado estava minado”, escreveu o capitão dessa selecção, Johnny Warren, na sua biografia “Sheilas, Wogs and Pooftas”.

A embaixada fez um alerta aos jogadores: “Tenham cuidado com pessoas de bicicleta, especialmente se levarem mulheres atrás, porque podem pensar que são americanos e disparar contra vocês”. E o hotel era um pardieiro, com condições de higiene deploráveis. Para evitar que alguém ficasse doente, o médico da equipa proibiu os jogadores de comerem no hotel e beberem água, aconselhando-os mesmo a beber cerveja (mas não demasiada...) A equipa faria as refeições com os soldados. “Enquanto eles iam combater, nós íamos jogar futebol. Foi uma experiência surreal”, escreveu Warren.

A 5 de Novembro de 1967, no estádio Cong Hoa - onde dois anos antes tinha explodido uma bomba dos Viet Cong que matara 11 pessoas -, a Austrália disputou o primeiro jogo deste “torneio da amizade”, que se saldou por uma vitória fácil (5-3) sobre a Nova Zelândia.

O teste seguinte, contra o anfitrião Vietname do Sul, foi mais complicado. Um golo de Warren colocou a Austrália em vantagem, que duraria até ao final. Mais tarde viria a saber-se que o vice-presidente sul-vietnamita, Nguyen Cao Ky, esteve no balneário, ao intervalo, a prometer aos jogadores locais uma quantia equivalente a seis meses de salários para vencerem.

Após outra vitória tranquila (5-1 a Singapura), a Austrália avançou para as meias-finais. O jogo contra a Malásia foi marcado por cenas de violência nas bancadas, com uso de gás lacrimogéneo e a presença de polícias e militares no relvado, após uma agressão de um malaio a um australiano que estava no chão. O empate só foi desfeito com um golo Baartz, no prolongamento.

O adversário na final foi a Coreia do Sul. E aí a Austrália já tinha o apoio das bancadas, porque os adeptos sul-vietnamitas, que detestavam os sul-coreanos, “perdoaram” a derrota aplicada pelos australianos à equipa da casa. Na Austrália, a resistência inicial à viagem da equipa tinha sido ultrapassada e o encontro foi transmitido em directo na rádio. Para motivar os jogadores, a federação australiana disse que, se vencessem, podiam ficar com os equipamentos. A Coreia do Sul chegou a estar a ganhar, mas a equipa de “Uncle Joe” Vlasits deu a volta ao resultado, triunfando por 3-2 e erguendo o troféu.

Baartz, um dos melhores futebolistas australianos de sempre, não esteve no Mundial 1974 devido a um golpe que sofreu num jogo diante do Uruguai, meses antes do Campeonato do Mundo, que o deixou entre a vida e a morte. Com 27 anos, não voltaria a jogar futebol. “Levei um golpe de karaté na garganta, cujo impacto incidiu na artéria carótida, que inchou e fez com que o fluxo de sangue para o meu cérebro se reduzisse. Fiquei com o lado esquerdo do corpo paralisado, praticamente o mesmo efeito de um AVC. Fui levado para o hospital e aconselhado e não voltar a jogar. Outra pancada podia ser fatal”, contou ao PÚBLICO.

Foi um final inglório para uma carreira que prometia: na adolescência, Baartz passou pelas escolas do Manchester United: “Ganhei uma bolsa para três meses de experiência, e depois deram-me um contrato para ficar”. Mas o avançado, cujo pai morrera anos antes, sentia saudades de casa e da mãe. “Passados 18 meses decidi regressar. Sir Matt Busby ao início não queria deixar-me ir! Pediu-me para reconsiderar, mas a decisão estava tomada. Às vezes questiono-me o que teria sido a minha carreira se tivesse ficado, mas não me arrependo”, afirmou ao PÚBLICO, por e-mail.

Ray Baartz tem uma rua com o seu nome em Sydney, foi distinguido em 2000 pelo governo australiano pelos seus serviços ao desporto e ao futebol em particular e em 2012 foi escolhido para o melhor “onze” da história da selecção australiana. Não foi ao Mundial 1974, mas quantos jogadores de futebol podem gabar-se de ter jogado numa zona de guerra (e sobrevivido para contar)?

Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos

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