Peter O’Toole (1932-2013): um homem das Arábias

A sua vida fora dos palcos e dos sets pede meças à riqueza e complexidade das personagens que interpretou. Ainda agora, quando morreu, os jornais britânicos dividiam a sua atenção, quase irmamente, entre a obra e as muitas particularidades da sua vida pessoal.

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Peter O'Toole a actuar em Jeffrey Bernard is Unwell © Robbie Jack/Corbis

Peter O’Toole já tinha alguma fama no teatro inglês quando David Lean o escolheu para interpretar T.E. Lawrence em Lawrence da Arábia.

Estávamos no princípio dos anos 60, e apesar dessa pequena fama junto dos frequentadores dos teatros britânicos, O’Toole, que tinha 30 anos quando Lawrence se estreou em 1962, era um perfeito desconhecido para 99% dos espectadores que em todo o mundo vieram engrossar o box office do filme.

Lean, consta, nem o escolheu por causa do seu currículo teatral, mas por o ter visto num obscuro filme inglês de 1960, The Day they Robbed the Bank of England, assinado por John Guillermin, apenas o segundo trabalho cinematográfico do actor e o primeiro depois de, recorrendo à cirurgia estética, ter retocado o nariz (antes disso era, parece, um nariz demasiado comprido).

Lawrence teve um efeito mágico sobre O’Toole ou, vice-versa também fica bem, O’Toole operou um efeito mágico sobre Lawrence: instalado nas escalas que fogem ao espaço do palco teatral, quer dizer, entre o close-up dos olhos muitos azuis de O’Toole e a imensidão branca da areia do deserto, o filme foi um sucesso lendário, fez do actor uma estrela planetária e deu um rosto definitivo a T.E. Lawrence.

O’Toole não largou o teatro, mas ficou com o caminho aberto para uma carreira cinematográfica de primeiro grau. Que não veio a ser propriamente de primeiro grau – apesar de alguns grandes “duelos” e encontros (com Richard Burton, Katharine Hepburn, Audrey Hepburn, Peter Sellers, Woody Allen, Sophia Loren, Bertolucci…), O’Toole nunca fez mais nenhum filme tão memorável como Lawrence. Bem pelo contrário, examinar a sua filmografia é passar os olhos por uma descoroçoante lista de irrelevâncias e mediocridades, salva por uma meia dúzia de honrosas excepções.

É evidente que O’Toole não foi o mais criterioso indivíduo da História quando se tratava de escolher filmes e papéis, algo que ele admitia sem problemas: “Aceito qualquer papel que me seja proposto.” Porque se o ideal era “esperar pelo papel certo”, o mundo real exigia atitudes mais pragmáticas: “E se o papel certo nunca aparecer?”

Maneira de pensar e de agir que explicam, certamente, por que até encontramos O’Toole num dos mais infames (e, valha a verdade, mais bizarros) filmes de sempre, o Calígula hardcore que Tinto Brass dirigiu em 1979 com o dinheiro de Bob Guccione, o homem da Penthouse. É verdade que muito bem acompanhado, até por lá andava também Sir John Gielgud. Malcolm McDowell, que foi o Calígula ele próprio, publicou agora no Guardian, por ocasião da morte de O’Toole, uma memória do que foi estar com Peter O’Toole no set de Calígula que vale a pena ler. Até porque o deboche de um filme daqueles não era algo totalmente estranho à vida privada de O’Toole, mas a essa parte já lá iremos.

Talvez esta falta de critério tenha prejudicado O’Toole na perseguição de algo que, ao contrário de muitos outros actores, ele nunca desdenhou publicamente: um Óscar da Academia de Hollywood. Um recorde é dele: o de actor mais vezes nomeado sem alguma vez ter ganho. Foram oito ocasiões, sempre sem resultados. Em 2003, a Academia seleccionou-o para o seu sistema de reparação de injustiças, a que chama o Óscar Honorário. A primeira reacção de O’Toole, que tinha então 71 anos, foi recusar, uma vez que ainda tinha a esperança de ganhar um Óscar “como deve ser”. Depois lá foi recebê-lo, uma vez informado pela Academia de que a coisa não era voluntária e que o Óscar Honorário lhe seria atribuído quer ele quisesse quer não. Uns anos mais tarde, em 2006, veio a última nomeação para um Óscar “como deve ser”, por Vénus, um filme de Roger Michell que punha O’Toole no papel de um velho e moribundo actor embevecido pela jovem sobrinha. Quem ganhou nesse ano foi Forest Whitaker, por O Último Rei da Escócia.

Por outro lado, a sua vida fora dos palcos e dos sets pede meças à riqueza e complexidade das personagens que interpretou. Ainda agora, quando morreu, os jornais britânicos dividiam a sua atenção, quase irmamente, entre a obra e as muitas particularidades da sua vida pessoal. Pertencia a uma gerações de actores britânicos que gostava de beber bem, e durante muito tempo bebeu muito bem, com parceiros como Richard Burton, Richard Harris, Oliver Reed ou Michael Caine. As histórias são mais que muitas, e há livros publicados só sobre o assunto. O’Toole, ele próprio, admitia que gostava de beber e da sensação de acordar “e descobrir que estava no México”. Ou mais perto: aconteceu-lhe uma vez sair para um copo em Paris e acordar no dia seguinte na Córsega. Sem saber o que tinha feito entretanto, e sem interesse nenhum em sabê-lo.

Contou Michael Caine que certo dia a seguir a uma noitada com O’Toole foram informados de que estavam proibidos de voltar a entrar no restaurante em que tinham jantado. Caine perguntou a O’Toole: “Mas que raio é que a gente fez?” E O’Toole respondeu-lhe: “Nunca perguntes isso. É melhor não saber.” Noutra vez passou um cheque para comprar um pub onde se recusavam a servi-lo por já passar da hora de fecho.

A amizade intensamente íntima com o álcool durou até aos anos 70, quando sérios problemas de saúde (um cancro no estômago) tornaram altamente aconselhável um corte de relações. Que nunca foi total – a acreditar em fotos recentes de O’Toole com copos de bebidas alcóolicas à frente – e só se tornou mais sério num segundo instante, já nos anos 80, por motivos advindos de outra ordem de sentido de responsabilidade: quando se divorciou da actriz Sian Phillips, O’Toole ficou com a custódia, durante boa parte do ano, de um filho pequeno, e essa, sim, foi a ocasião em que mais signficativamente passou a controlar a sua ingestão de álcool. Nunca deixou de fumar que nem uma chaminé, no entanto: alguns recordar-se-ão da participação de O’Toole num “exclusivo” da televisão portuguesa, entrevistado por Manuel Luís Goucha num programa da TVI no final dos anos 90, e O’Toole a acender cigarros uns nos outros durante o tempo todo, numa altura em que já ninguém fumava na televisão.  

Irlandeses e ingleses disputam a “propriedade” de O’Toole, que tinha origem irlandesa, mas viveu a infância em Inglaterra, na proletária Leeds. O’Toole não esquecia o seu lado irlandês. Embora vivesse em Inglaterra, quando nasceu o seu primeiro filho, nos anos 60, ele e Sian Phillips apanharam um avião para Dublin com o expresso propósito de que a criança ali nascesse e tivesse portanto a nacionalidade irlandesa.

Mas foi em Inglaterra que “se fez”, num meio que em nada o destinava às andanças shakespeareanas em que primeiro se veio a destacar. Nada tinha de aristocrático, pese o porte e os vários papéis de reis (foi duas vezes Henrique II, em Becket e O Leão no Inverno) e nobres que desempenhou no teatro e no cinema. Pelo contrário, a infância foi passada nos meios mais pobres de Leeds. “Nem sequer venho da classe operária, venho da classe criminal”, dizia, referindo-se ao facto de muitos dos seus colegas e amigos de infância terem depois dado em criminosos condenados.

Ele, quando abandonou a escola, foi trabalhar primeiro como jornalista, profissão de que desistiu quando resolveu que estava farto de “relatar acontecimentos” e queria ser ele próprio “o acontecimento”. Meio a brincar meio a sério, dizia que tinha escolhido a escola de teatro “por causa das miúdas”. E foi no teatro, no Bristol Old Vic, que no final dos anos 50 começou a dar nas vistas, em papéis clássicos (como Hamlet ou como Shylock, entre outros) hoje tidos como memoráveis.

Richard Burton disse o que há de mais eloquente sobre esse jovem O’Toole: “De vez em quando, uma ou duas vezes numa geração, aparece um homem ou uma mulher que eleva a arte da representação a uma dimensão estranha, mística e profundamente inquietante.” Na sua geração, O’Toole foi esse homem.
 

Faltaram realizadores

Dois anos antes de Lawrence da Arábia, um dos primeiros papéis do actor fora num dos últimos filmes do enorme cineasta que se chamou Nicholas Ray, em The Savage Innocents – num cenário completamente diferente, com o gelo polar no lugar da areia quente do deserto. Actor genial, mais genial ainda no teatro do que no cinema segundo rezam todas as histórias, à carreira cinematográfica de O'Toole só faltou uma coisa: mais encontros com realizadores geniais (como Ray), mais filmes com a imensidão de Lawrence.

Da “fornada” de actores britânicos em que O'Toole apareceu, talvez ele fosse o menos “naturalista”, o mais marcado pelo teatro. Razão, ou consequência, de ao contrário dos outros nunca o termos visto em exemplares de “kitchen sink realism” (o “realismo de pia de cozinha” que marcou o cinema britânico no princípio dos anos 60), e mais em filmes que faziam apelo a uma matriz teatral ou marcada pela solenidade (no bom e no mau sentido) das adaptações da grande literatura. Becket, onde contracenava com Richard Burton (um pouco mais velho do que O'Toole, mas talvez o actor mais próximo dele, em termos de “perfil”), ou o Lorde Jim, que Richard Brooks sacou a Conrad – isto para falar apenas em filmes de meados dos anos 1960, quando fresca estava a popularidade advinda do papel de O'Toole em Lawrence.

Quase sempre em tensão entre um porte aristocrático (de origem “cultural”) e a raiz, nada aristocrática, familiar – tensão, de resto, partilhada com tantos actores britânicos do seu tempo –, Peter O'Toole, fora algumas notáveis excepções, é a principal razão para se ver a maior parte dos filmes em que entrou.

E, dizendo isto, não esquecemos o seu Leão no Inverno (onde contracenava com Katharine Hepburn, a sua actriz preferida), nem esquecemos o seu papel num dos últimos Premingers (Rosebud), nem um dos seus filmes mais populares nos anos 1980 (O Meu Ano Favorito, de Richard Benjamin). Nem, claro, o que porventura foi o seu último grande papel em cinema, certamente o último filme apostado em responder à grandiosidade de Lawrence, o Último Imperador de Bertolucci.
 
Peter O'Toole morreu a 14 de Dezembro em Londres aos 81 anos
 
 
 
 
 

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