Depois de Mandela

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Logo a seguir à morte de Mandela, o arcebispo Desmond Tutu desdramatizou as inquietações de muitos sul-africanos. “Que nos vai acontecer agora que o nosso pai morreu? Vais ser o dia do juízo e a catástrofe? Alguns sugerem que o país vai incendiar-se. [Mas] o sol levantar-se-á amanhã, no dia seguinte e no outro. Pode não parecer tão brilhante como ontem, mas a vida continua.”

O jornalista Richard Poplak concorda: “Diz-se que alguém só se torna verdadeiramente adulto depois da morte do pai.” Agora, na “abjecta solidão da idade adulta”, os sul-africanos vão ter de fazer as perguntas certas sobre o seu futuro e dar-lhes resposta.

Nelson Mandela estava afastado do poder e da política há longos anos, mas a sua presença era vivida como uma protecção contra “os demónios da África do Sul”. O primeiro desses demónios é uma cultura de frustração e violência. Graça Machel, que rarissimamente se pronunciou sobre a situação do país, avisou em Março que se caminhava para uma situação explosiva: “ A África do Sul é uma nação em cólera. Estamos à beira de um precipício. O nível da cólera e da agressão está a subir.” Lembrava o massacre dos mineiros de Marikana, no Verão anterior, e denunciava “a crescente institucionalização da violência” e a transformação da polícia “numa força activamente agressiva perante um público indefeso”.

A cultura de violência
A cultura de violência remonta ao apartheid mas reaparece hoje como forma de expressão da frustração social contra o novo poder. A África do Sul está no topo da taxa de criminalidade violenta e dos confrontos sociais violentos. Explica o psicólogo Sath Cooper: “A violência tornou-se endémica porque todos nós a socializámos ao aceitar como correcto o uso da violência nas nossas vidas” e na nossa história. Há a ideia de que “a violência compensa”.

Depois, é uma das sociedades mais desiguais do mundo. A economia cresceu aceleradamente desde 1994, nasceu uma classe média negra e uma classe de capitalistas negros. Mas 85% dos negros continuam pobres e um terço da população não tem trabalho, sobretudo os jovens. Dez por cento da população recolhe 58% do rendimento nacional e os 50% de baixo cerca de 8%. “O desemprego é o calcanhar de Aquiles” do país, diz um estudo do banco Goldman Sachs. Os governos do Congresso Nacional Africano (ANC) fizeram grandes investimentos na saúde e na educação, com bons resultados porque o ponto de partida era muito baixo. Mas os indicadores sociais continuam desastrosos.

Para lá da conquista da liberdade e da dignidade, vive-se hoje melhor na África do Sul. A grande diferença em relação ao passado é a percepção das novas desigualdades: hoje há brancos pobres e negros ricos. “Uma pequena elite negra, saída das fileiras do ANC e dos sindicatos, tornou-se fabulosamente rica através da participação nas antigas grandes companhias ‘brancas’, obtendo contratos do Estado e ocupando os lugares cimeiros da administração pública”, explica o politólogo William Gumede.

Os governos são forçados a dar garantias aos financeiros brancos, já que a economia sul-africana assenta em sectores “intensamente globalizados”, e ao mesmo tempo responder às aspirações dos milhões de jovens sem emprego. O fim do apartheid criou expectativas altíssimas. As políticas foram cumpridas. As económico-sociais poderão demorar duas ou três gerações a realizarem-se.

Orgulho e fantasmas
Alguns analistas temem que a morte de Mandela possa deixar a África do Sul sem o seu “centro de referência moral” e aprofundar a crise que atravessa tanto o país como o ANC, fazendo ressurgir os fantasmas de confrontos raciais ou contra os imigrantes estrangeiros (negros) ou ainda o regresso da rivalidade entre xhosas e zulus. A comunidade branca continua a interrogar-se sobre o seu futuro.

A “nação arco-íris”, inventada por Desmond Tutu e adoptada por Mandela, foi o mito fundador da nova África do Sul. Na realidade as várias comunidades — a começar pelas negras — continuam a viver separadas mas sem grandes choques. Para o politólogo Adam Habib, as desigualdades sociais são mais importantes do que as fracturas raciais e, se o ANC não conseguir diminuir as desigualdades, tal poderá significar “o fracasso da reconciliação, já não entre brancos e negros mas entre ricos e pobres”.

No entanto os fantasmas resistem. O pessimismo de muitos brancos, sobretudo os fazendeiros, cresce quando ouvem demagogos populistas como Julius Malema exigir a nacionalização das minas, bancos e terras. Ou quando ouvem um jovem escritor, Eric Miyeni, proclamar: “Por causa de Mandela, sofremos a arrogância dos brancos (...) que hoje se recusam a abrir a economia aos sul-africanos negros.” Têm o acordo de Robert Mugabe, que acusou Mandela de ter sido “muito brando com os brancos”. Muitos dos nascidos depois do apartheid, os born free, são sensíveis a estes discursos.
Mandela desistiu das nacionalizações maciças não apenas pela necessidade de compromisso com a comunidade branca. Percebeu, depois de sair da prisão, o risco de criar um “Estado falido”. O exemplo do Zimbabwe deu-lhe razão.
Mandela deu aos sul-africanos uma razão de orgulho nacional. E mudou a imagem internacional da nação: é o soft power da África do Sul, escreveu há dias um jornalista. “Mandela foi realmente amado de uma maneira que pode ser estranha na idade pós-heróica da política”, escreveu o correspondente do Guardian. Mas, na África do Sul, o fim do apartheid foi uma “era heróica” e, de certo modo, também assim entendido à escala planetária.

Efeitos políticos
O ANC sempre utilizou a imagem de Mandela — retirado da política em 1999 — para ganhar votos e encobrir a sua incompetência. Voltará a fazê-lo nas eleições de 2014, desta vez manipulando a emoção da sua morte. O ANC está em erosão e “em crise existencial, porque o partido da libertação passou a ser visto como arquitecto de um regime económico que se voltou contra o povo”, escreveu Adam Habib depois do massacre dos mineiros. Os estudos de opinião apontam uma elevada descrença no partido. Um dos seus pilares, a central sindical Cosatu, está em declínio. Há a percepção de um sistema crescentemente corrupto, a começar pelo Presidente Zuma.

Mas, por razões históricas, o ANC continua a ser o partido dos negros. Está a apodrecer, mas continua a ser uma eficaz máquina de poder. Não tem competidor à altura. A sua votação está no entanto a descer. Entre 2004 e 2009 passou de 70% para 62. Que votação terá em 2014? É a incógnita. O veterano analista Allister Sparks, que foi deputado do ANC em 1994, não prevê surpresas. “Não penso que a morte [de Mandela] tenha grandes implicações políticas.” O ANC continuará a governar.

No meio de todas as grandezas e misérias, a África do Sul é a maior democracia de África, com liberdades individuais, uma imprensa livre, uma justiça independente, uma oposição multipartidária e uma sociedade civil dinâmica. Depois de Mandela, a vida continua. Agora sem heróis.

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