A música não nos chega. Também queremos a embalagem

A música confunde-se com um bem comercial, perdida em incontáveis ruas apenas para ser ocamente consumida

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Yamipaperdreams!./Flickr

Apesar do singular saudosismo vintage que dá carácter a grande parte da nossa geração, é-nos já completamente difusa a imagem e memória de um CD, quanto mais de uma cassete ou mesmo de um vinil. O tempo já diluiu os períodos em que a música era algo semelhante a um objectivo artístico exposto em restritos "museus"; momentos em que mais do que um adjectivo ou adorno ao ambiente, esta originava rituais, despertava prazeres que de tão improváveis (ou desconhecidos de inocente ignorância) se assemelhavam a milagres facilitados. Por outro lado, é realmente notável a evolução que a música e a sua materialização e disponibilidade física sofreu no fluir da História.

Mas sem enganos puristas: não se trata apenas das conjugações de som e silêncio em singularidade rítmica de algo "informe ao olhar", o algo que apenas se ouve — ela adquire uma forma física, suportável ao tacto, visível ao olhar não somente para sua memória mas para uma simples mas essencial compreensão: ela existe.

Em certo tempo, um manuscrito era o seu contemporâneo "ficheiro digital". Este veículo (um dos) que lhe dá forma existe num campo gráfico, aproveita-se do visual para se fazer notar em objecto, em suporte que satisfaça ou quebre o quase cepticismo da sua existência. E esta paralela e dependente evolução é tão notável e revolucionária como a outra. Lá se foi a necessidade de nos sentarmos em Divino Ofício para ouvi-la; não precisamos de um ritual tertuliano ou de um agendado concerto privado com virtuosos ainda vivos; não precisamos sequer do balcão de um teatro ou de outros actores que não nós mesmos para a possuirmos. O pesado e moroso fardo de possuir música tornou-se tão leve e rápido como o formular da vontade ou do desejo. Em olhar retrospectivo, concebemos a ideia de "transportar" música através de um disco de goma-laca de duvidosa ergonomia como comédia ou pura ficção. Neste agora ascendemos à eficácia e possibilidade do imediato: o clique.

A presença silenciosa

O cilindro fonográfico perdeu-se para o disco e para o vinil e estes caíram no obsoleto quando comparados com as portáteis cassetes de fita que já se permitiam a ser apêndice humano. Mas, mesmo assim, por consequência do mesmo intelecto, lá caíram estas em vergonhosa desgraça, ao esfumaram-se para o CD e DVD e, com a mesma gula de ligeiro passo, tudo isto passa a nevoeiro ficcional de "era uma vez" com o divino Mp3 e o inexplicável iPod. Em verdade não falamos aqui de alterações na essência da música, mas sim do seu valor através da forma como esta se dispõe ao mundo: tão disponível que se torna já numa presença "silenciosa" de tão omnipresente. O pecado e simultânea graça que conduziram a tão rápida ascensão é do inquestionável mérito das plataformas virtuais e do novo Olimpo da informação: a Internet.

No entanto, o mesmo olhar retrospectivo esbarra numa simples mas exponencial questão: o que se perdeu? Não é necessário utilizar a iTunes store para o compreender de imediato. Não era somente a necessidade de possuir música que nos levava a empreender o paciente esforço de comprar um CD ou vinil, não queríamos apenas a sua alma mas também o seu corpo: o suporte, a embalagem, a capa, a arte gráfica e todas as informações (ainda as consideramos palha?) que a tornavam completa — aquilo a que podemos realmente arriscar apelidar de "álbum". A necessidade de obter o objecto é a mesma que nos impele a abdicar de um "kindle" em prol de um livro.

Reduzimos a música somente à sua existência sonora (não que o seja, atenção), mas esquecemo-nos de todas as outras áreas e outra arte que sempre a suportou: a sua materialização visual. A música confunde-se com um bem comercial, perdida em incontáveis ruas apenas para ser ocamente consumida. Seria toda a informação presente no contexto visual, textual e gráfico do álbum — a sua embalagem e capas, o "booklet" a conter a letras das faixas, as história e biografias — seria tudo isto apenas um extra ao som? Informação efémera em decadência irreparável? O sentimento do coleccionismo, o vício? A necessidade do contrário é demasiado real. A arte das musas requisitou para si ao longo do tempo outras artes, outros gestos, e se o fez não foi por mero capricho mas por necessidade presente e consciente.

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