Verdades sobre o ensino do Português: metas curriculares e não só

O professor não fica dentro dum espartilho com este Programa – liberta-se é dum programa que, admitido em 2001, terá, em 2015 (quando este Novo Programa vigorar), mais de uma década de leccionação.

Em regra, o que hoje se faz nas aulas de Português, o que se promove e se crê moderno, inteligente e científico, é de uma total ineficácia didáctica e pedagógica que, não raro, deita por terra os esforços daqueles que vão tentando remar contra o absurdo. Por isso não espanta que os professores não queiram ser avaliados. Como seria se, seis meses antes da realização do Exame Nacional de Português do 12.º ano, os professores o fizessem, nos mesmos moldes em que o fazem os nossos alunos? Que resultados teríamos a nível nacional? E se tivéssemos de apresentar uma obra literária em dez minutos? Acharíamos justo e lógico o formato da avaliação?

Verdade(s) do ensino... Pensemos sobre a avaliação da oralidade. A avaliação desta competência deu azo a toda a espécie de práticas circenses. Importando, das línguas estrangeiras, um modelo pragmático inócuo, os alunos apresentam livros em Português que, valha a verdade, não foram lidos. Leitura exige releitura, tempo, investigação, domínio dos mecanismos do texto literário, seja no que tange a processos retóricos, seja no que respeita a questões de periodologia, expressão ideológica; aprofundamento de questões de estilística ou de simbologia, sem esquecer a importante distinção, na elucidação da obra de arte literária, entre tema e motivo. Ora, em apresentações que rondam os dez minutos por aluno, que pode este dizer de pertinente e rigoroso? Já noutra ocasião escrevemos: nada.

Com efeito, as apresentações orais retiram tempo essencial para se praticar a expressão escrita e a leitura inferencial. Há casos gritantes de absurdo e cómico (que nos poderiam fazer rir, não fosse o trágico que encerram). O professor propõe ao aluno, no 12.º ano, suponha-se, a apresentação de O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena (1919-1978). Vendo o tamanho desta novela, não são muitas as páginas e parte-se, então, do pressuposto de que essa obra é de fácil leitura e apresentação. Pasma o aluno da dificuldade quanto ao romanesco e respectivas simultaneidade e multiplicidade das técnicas narrativas que incorporam essa novela. Como ler? Que significam aqueles textos a duas colunas? Como compreender os recursos sintácticos e a dimensão extratextual de encaixes, alternâncias e encadeamentos? Mais: a polifonia é conceito que os alunos dominem e saibam articular com os constantes cortes da diegese (analepses, prolepses e catálises narrativas)? E saberão identificar na figura do físico a sua simbologia? Se quem aconselhou a leitura não tiver domínio da bibliografia passiva, como espera que o aluno apresente com inteligência uma obra deste calibre? Ao nível da intertextualidade, na história entre o físico e D. Urraca, saberá o leitor do ensino secundário que se esconde por detrás desse envolvimento a iniciação esotérica no amor, tal qual Pessoa a fixou no iniciático Eros e Psique? E certos atributos do físico (o seu corpo, a sua ambígua sexualidade, a sua dupla condição de demónio e deus, a sua invisibilidade...), saberá o aluno inferir as significações eso e exotéricas? E os reenvios, constantes, para textos da tradição?... Em dez minutos a apresentação será uma enxurrada de lugares-comuns, de perplexidades, tidas por originais... com a anuência cúmplice de quem ensina.

Serve esta realidade para quanto se lê ou se dá a ler ao abrigo dos livros sugeridos pelo Plano Nacional de Leitura. A intenção do plano é de louvar, mas embate na realidade dura dos factos: os nossos alunos (e não raros professores... a maioria, talvez?) não compreendem o que lêem porque não sabem, não conhecem a ensaística de referência. Como avaliar uma apresentação de Uma Abelha na Chuva, de Carlos de Oliveira (1921-1981), se nem é a obra integral que se vai apresentar, mas sim uma página?! Como? Com que seriedade? Se o aluno nunca ouviu falar de neo-realismo ou se, tendo uma só página para comentar, jamais exercita análise estilística nas aulas, que verdade há neste tipo de avaliação?

Tudo isto se relaciona, ao fim e ao cabo, com a questão das Metas Curriculares e os Novos Programas. Parta-se de uma constatação simples: a valorização do texto literário, o reforço da componente literária conducente ao acesso do nosso património linguístico e cultural, isso é exigência que todos temos de defender. A leitura do texto literário conduz à escrita científica, informada e analítica, na medida em que, para lerem as obras e compreenderem o que estas dizem, alunos e professores terão de ler ensaio e crítica, conhecer a fundo as exegeses propostas pelos especialistas. Dir-se-á que não há tempo, dada a extensão do programa... É falsa essa ideia, para mais quando houve aumento da carga horária em Português... Perguntar-se-á: de que vale ter aumentado essa carga horária se nas aulas os alunos continuam a ter mais do mesmo, com a agravante de perderem tempo com apresentações banais de obras que ninguém leu porque ninguém entende o que está a ler?

Pois bem, as Metas Curriculares colocam a tónica onde ela deve ser colocada: no estudo da nossa literatura a partir da noção de género, sem dispensar questões de gramática e de História da Língua. Com estas metas e este programa pode ser que a avaliação da oralidade deixe de ser a fantochada geral que hoje é. Claro que para quem, sendo professor, tem mentalidade de instrutor de condução, as Metas Curriculares estatuem um obstáculo quase intransponível: o de se leccionar com rigor o mais exigente dos textos – o literário.

Na verdade, saber questões histórico-literárias, os respectivos contextos de produção e de recepção, alarga o universo referencial dos discentes e pode tornar as aulas mais produtivas em termos de investigação e questionamento do humano. Bom exemplo é, entre outros, este: as Viagens, de Garrett (1799-1854). Escolham-se os pontos nodais da diegese, aplique-se a leitura metódica e leia-se, com regularidade, um ou outro ensaio sobre a obra, fazendo com que os alunos respondam a um questionário incidindo sobre o “como diz” do texto em causa e a leitura crítica do especialista. O comentário, a dissertação tornar-se-ão práticas regulares e fecundas. E o mesmo se aplique ao trovadorismo e a Fernão Lopes, a Garção e Bocage, em relação a Antero e à poesia de Pessanha ou a textos memorialísticos. De António José Saraiva a Daniel Pires; de Ofélia Paiva Monteiro a Joaquim de Carvalho e Esther de Lemos; de Jacinto do Prado Coelho a Paula Morão, muitos são os ensaios que os alunos e professores podem ler com proveito e exemplo. É de texto argumentativo que falamos, sem dúvida. Não de biografismo pelo biografismo.

Sintomático é que a presidente da Associação de Professores de Português tenha, a priori, o capcioso argumento, típico dos ob-reptícios: dizer que com estas metas regredimos vinte anos... Não, minha senhora. Veja bem: o professor não fica dentro dum espartilho com este programa – liberta-se é dum programa que, admitido em 2001, terá, em 2015 (quando este Novo Programa vigorar), mais de uma década de leccionação. O resultado qual foi? Média nacional de 8,9 no secundário e uma iliteracia nefanda. Eis o resultado. Para quem, como Edviges Ferreira, tem sempre a posição do “não li e não gostei”, estas metas colocam um problema óbvio: o professor terá de ler e terá de saber como ensinar a ler e a escrever. Terá de ler literatura e ensaio sobre obras da nossa cultura (e não só...) e terá de saber articular o discurso literário com História e a Filosofia, com Música e as Artes... É chato. Dá trabalho. Mas os alunos agradecem. Merecem. E o país também.

 Professor e crítico literário
 
 
 
 
 

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