Viagem à geração de Alcino Soutinho

Alexandre Alves Costa, companheiro de Alcino Soutinho na "Escola do Porto", deixa aqui um testemunho escrito após a morte do arquitecto que é a memória de uma geração.

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Viagem à Grécia, Pártenon: Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez, José Grade, Alcino Soutinho, Fernando Távora e Álvaro Siza DR

E digo isto porque a minha vida está a ele tão estreitamente ligada que falar dele terá certamente o tom da autobiografia. Aceitarei a inevitabilidade desse facto, com o pudor que me for possível e, ao fazê-lo, ponho-me de fora de um depoimento frio, do tipo de uma leitura adjectivada do seu curriculum. Falarei de memória e da memória, tentando encontrar um qualquer bom senso para o discurso que me defenda do excesso de emoção.

O Alcino Soutinho terminou o Curso de Arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, em 1957. Em 1956, entrei eu como aluno. Não fomos contemporâneos, mas fomo-nos encontrando nos lugares que muitos, de idades diferentes, frequentavam: o Café Majestic, o Cine-Clube, os ateliers por onde circulei nesses verdes anos, antes de me fixar mais estavelmente no atelier do Álvaro Siza: do Mário Bonito, do Augusto Amaral, do Rui Pimentel.

Quando entrei para a Escola, o Alcino tinha uma aura especial, juntamente com outros, como o Raul Hestnes Ferreira. Todos tinham estado presos por envolvimento em actividades associativas ilegais – tinham participado activamente na Associação dos Estudantes das Belas-Artes. Recordo o Mestre Carlos Ramos, que testemunhou, em tribunal, a favor dos seus alunos.

Mas, no caso do Alcino, a aura ia mais longe, ele tinha viajado, em estudo, por Itália, contactado Albini, Gardella, Rogers, a nova cultura arquitectónica que tão influente seria em Portugal. Como projecto de fim de curso, apresentou um museu que interessou a toda a gente envolvida, como ele, na renovação da linguagem do Moderno.

Muito cedo manifestou a coragem, que ao longo da vida soube manter, de não se sujeitar a normas dominantes, desviando-se assumidamente dos seus mais próximos colegas, assim se aproximando de outros, que na altura cruzavam diversos caminhos linguísticos e, também, do fervilhar de ideias que marcava a actualidade do pensamento arquitectónico europeu.

A aura tinha, ainda, contornos mais mundanos, que, obviamente, não irei explorar muito aqui, mas que se prendiam ao sucesso pessoal que cultivava nas suas relações com amigos, amigas e namoradas. A sua presença preenchia, com o exercício do seu humor permanente, muitas das nossas inesquecíveis noites de cavaqueira, em época em que a música de fundo eram as vozes e os risos que enchiam os cafés e depois as ruas desertas da cidade, onde o nevoeiro portuense levava às confidências mais íntimas ou às especulações mais metafísicas.

Continuávamos a nossa Escola em plataforma alargada, onde a problemática da arquitectura, tenho que reconhecê-lo, nunca teve grande centralidade, fora dos momentos intensos em que se projectava ou se visitava em maravilhosas viagens que fomos fazendo, com uma precariedade de conforto que hoje não se entende, a Moledo, a Lisboa, a Ofir, a Marrocos, à Tunísia, à Argélia ou à Grécia.

Antes de mais, os banhos nos mares quentes, os piqueniques nas paisagens que enchíamos de significado, depois o chá de menta e os cafés. Pouco se desenhava, agarrados como estávamos à leitura que nos revelasse os estratos de tantas sobreposições culturais, mortas e sobreviventes.

Fomos felizes por nos acharmos autores do lado solar que viria dar continuidade à vida submersa na natureza-morta do salazarismo.

E assim nos aventurámos à boleia, ou em carros de fraca qualidade, pelas cidades que aportuguesámos ou construímos, pelas capitais imperiais, pelos Atlas, pelos vales dos rios que não chegam ao mar, pelas sete cidades visíveis da Gardhaia por onde tinha andado Le Corbusier antes de Ronchamp, pelo Sara num silêncio de areia que não foi pisada e, entre mesquitas, minaretes e ruínas de túmulos e santuários clássicos, atravessámos os mundos, com a serenidade de quem revisita as terras da sua infância agora explicadas pelo Guide Bleu.

Lembro a Totó, o Álvaro, o Zé Grade, o Alcino e a Laura, o Sérgio, a Luísa, o Arquitecto Távora e a Tucha, o Emídio e tantos outros, nas diversas circunstâncias.

Os filhos foram constituindo um acrescentamento natural e um rejuvenescimento desta família alargada, e vocês sabem, Cláudia e Andrea, como foram bem-vindas! As nossas casas, enquanto eles e elas dormiam, foram sedes de reuniões altamente festivas, de antifascistas à volta de uma garrafa de bagaço!

Vivemos o 25 de Abril com a alegria de uma consagração da liberdade que em conjunto sempre tivemos e quase todos entrámos como docentes na Escola de Belas-Artes, depois Faculdade de Arquitectura. Trabalhámos no SAAL [um projecto de habitação que juntou arquitectos e população lançado em 1974] quando a Escola e a Cidade eram o mesmo.

Custava a acreditar que era finalmente nossa, a nossa Escola. Sei hoje que fizemos, na sequência dos que nos antecederam, a "Escola do Porto"!

O Alcino Soutinho, arquitecto e artista talentoso entre os talentosos, tomou conta com o Siza da área menos prestigiada, da construção, numa tentativa de dignificar a nossa profissão de arquitectos como construtores de obras reais e não apenas de imagens, que rapidamente se viriam a tornar puramente virtuais.

Não sei, ao que vejo hoje, se ganhámos a batalha, mas sei que ficaram muitas obras construídas, marcas de que todos nos podemos orgulhar.

Não posso deixar em branco a passagem, pouco referida, do Alcino, pela Federação das Caixas de Previdência, porque isso correspondeu a um movimento espontâneo onde se incluíram alguns dos nossos melhores arquitectos, também empenhados no plano cívico e político, que decidiram trabalhar nos programas habitacionais do Governo, modesta e quase anonimamente. Assim, também Nuno Teotónio Pereira, Vítor Figueiredo, Vasco Lobo, Braula Reis, Justino Morais ou Raul Hestnes.

Foi não só a necessidade sentida e respeitável de trabalhar na cidade, como a vontade de servir o povo, os novos habitantes da cidade, os antigos trabalhadores fabris, a classe operária, enfim! A habitação colectiva foi o tema e uma das portas por onde entraram na cultura portuguesa Amesterdão, os racionalistas e os expressionistas, a União Soviética, os sidlung de Berlim, Bruno Taut, os italianos neo-realistas, as new towns inglesas, a cidade americana.

Mas o desejo de transformação saldou-se por uma trágica desilusão: como a inutilidade da generosidade idealista de Rocco, fruto da lucidez de Visconti. O regime fortalecia-se, apodrecendo com a guerra colonial. Afinal, como disse a Sophia, a pátria que temos não a temos!

Foi, no entanto, essa experiência, quando, com o SAAL, construir para o povo se transformou em construir com o povo, que fundamentou as bases formais dos primeiros e únicos projectos da revolução de Abril.

A primeira obra
A primeira obra de autor de Alcino Soutinho surgiu em 1957, Grupo de Casas em S. João de Brito, no Porto, com Augusto Amaral.

Seguiram-se muitas outras de tão grande importância e impacto como a Pousada de Cerveira e o Museu Amadeo de Sousa Cardoso, em Amarante, a belíssima proposta, nunca realizada, para a Misericórdia de Viana ou a Câmara Municipal de Matosinhos. Depois, e até hoje, tantas e tantas, executadas com uma energia, uma inventiva e um profissionalismo assumidos com uma naturalidade rara num país onde a prosápia e a vaidade podem resultar do simples cumprimento do dever.

Em tempos, mais ou menos na altura da construção desta câmara, escrevia eu que alguma da recente produção da arquitectura portuense estava marcada por uma situação de adaptação a uma nova clientela que começava a avultar sobre o cliente individual culto. Este facto acarretou a necessidade de abertura a novas escalas, novas linguagens e novos conteúdos, sem a prioris sobre a qualidade do cliente, dos seus programas e até dos seus gostos. Isto representou a necessidade de manuseamento dos instrumentos disciplinares, admitindo rupturas, perdas de continuidade do ponto de vista do estilo que não deveriam continuar obscurecidas, uma vez que da sua clarificação poderia depender a eficácia da resposta.

É exactamente esta clarificação que Alcino Soutinho tenta como homem de bom carácter, liberto da ênfase, sem viver isso como um drama de perda de coerência. Ele é dos que, com maior convicção, tentaram acolher o sentido não puramente negativo que a experiência estética ia assumindo numa época de cultura manipulada, resistindo à potência omnidevoradora do kitsch, sem recusar a comunicação.

Por aqui se procuraram desejadas dissonâncias no perturbante laconismo e invejável unidade da chamada "Escola do Porto", quando se tratava do indispensável aprofundamento e complexização dos valores da experiência passada. Por isso, os seus verdadeiros amigos lhe chamavam, ironicamente, arquitecto pós-moderno envergonhado e infiltrado, enquanto ele, sorrindo, assinava connosco, convictamente, o manifesto que elaborámos colectivamente contra a Exposição do Pós-Modernismo que se realizava em Lisboa.

A sua obra é sempre afirmativa, de resumo e síntese, brilhante na consolidação do que vai sendo adquirido, em dramáticos processos de crise, de que conscientemente se alheia.

Depurada de ambíguas complexidades, resultado de um saber disciplinar antigo que, na prática construtiva, recusa qualquer retórica literária, a obra de Soutinho é, sempre, o epígono de uma inquietação que, resolvida, não deixa transparecer. Assim, a forma é resposta segura à função e não pretexto para o debate sobre si própria. Este debate, a existir, é anterior e exterior à sua obra, que, assim, pode afirmar convictamente e a cada momento o estado da arte de construir.

Na sua emocionante capacidade criativa, Soutinho tem uma obra descontínua, cujo nexo profundo que nada deixa de fora, como dizia Álvaro Siza, tem de ser encontrado no manuseamento da diversidade das linguagens, no carácter temporário e local dos consensos e não no objectivo único e dogmático da persistência de um idêntico portuense ou nacional, para ser, simplesmente, mais uma das obras que caracterizam a qualidade e a diferença dos nossos mestres pedreiros.

Alcino Soutinho esteve sempre aberto a outros arquitectos, outras arquitecturas, mas sobretudo, a outros mundos que não apenas o pequeno mundo da nossa profissão que tantos autores tendem a considerar central, sendo, de facto, um de entre outros.

Embora tendo exercido a sua actividade profissional durante mais de cinquenta anos, tem a sua obra publicada de forma dispersa e incompleta, em revistas nacionais e estrangeiras. Mas, como há muito tempo dizia Siza, não existe um estudo monográfico que permita o seu enquadramento e uma segura interpretação: este é necessário e urgente.

E que ridículas são estas palavras se as compararmos com a dimensão verdadeira do que não disse. Com a tua morte, Alcino, desapareceu uma parte de nós mesmos.

 O arquitecto Alcino Soutinho morreu a 24 de Novembro.

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