Retrato de um autor que pensa as palavras como se fossem música

Ricardo Neves-Neves escreve o tempo todo. Mary Poppins, ou a Mulher que Salvou o Mundo , que também encena, é um jogo lúdico onde é a música que se ouve que conta uma história sem início nem fim, como uma lenga-lenga.

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Mary Poppins Raquel Albino
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Ricardo Neves-Neves Jorge Gonçalves

Se fosse possível ler um texto como uma partitura musical, o teatro de Ricardo Neves-Neves seria uma cantilena que vamos repetindo sem saber bem a sua origem

Certo é que repetimos, como se nos fosse natural, as mesmas frases anunciadas por um gesto, os mesmos gestos vindos de uma memória herdada, não necessariamente vivida por nós, talvez até imaginada. Da ordem do que é público, do que é vivido e experimentado.
Aos 28 anos, o teatro de Ricardo Neves-Neves é um teatro que respira uma vida improvisada, imaginada, impossível de identificar a sua origem porque vive num permanente estado de inquietação, a que ele chama improvisação. “São as palavras que escolhem o texto”. E o autor, dizemos nós. Ou o que dele vai ficando daquilo que escreve. “A primeira pergunta que fazem a um autor é o que quer dizer. Eu tenho vontade de dizer que me interessa escrever sobre o que não me interessa”.
Mary Poppins, a Mulher que Salvou o Mundo, que hoje, e até 14 de Dezembro, se apresenta no Teatro da Politécnica, em Lisboa, depois de ter sido trabalhada em 2012 em Barcelona no Obrador d’Estiu-Dramaturgia, sob orientação do dramaturgo inglês Simon Stephens, e tido uma primeira estreia no Teatro Esfera, em Novembro desse ano, é um exercício que imagina a melhor das governantas como alguém que fala um português de rua, banal, coloquial, anárquico por vezes. É a imaginação a funcionar, mas é, sobretudo, um modo de pensar no teatro como máquina em permanente andamento. Já tinha sido assim em O Regresso de Natasha e A Porta Fechou-se e a Casa Era Pequena, textos seus que encenou na sua companhia, o Teatro do Eléctrico, e onde se percebia já um desejo de olhar para um texto como um conjunto de frases musicais.

A sensibilidade da qual se alimenta a sua escrita vem da improvisação que a própria escrita potencia: “Preciso de uma frase com determinada métrica. às vezes quero dizer: ‘A personagem sentou-se na poltrona’, mas poltrona tem três sílabas [pol-tro-na], e eu preciso de duas. Então escrevo: ‘A personagem sentou-se no sofá’, que tem duas sílabas [so-fá]. A partir daqui, a poltrona dá-me [uma cena] interior e o banco [uma cena] exterior, se for um banco de jardim. E então encaminho a peça noutro sentido”. É por isso que Ricardo Neves-Neves acredita que “são as palavras que escolhem o texto”. Diz que precisa da liberdade que lhe é pedida pela escrita porque “o que fica do espectáculo é a sua música”. “Se estou a fazer uma cantilena, ou um texto em prosa me sugere uma quadra popular, preciso de um quarto verso. E porque tenho que o encontrar, esse quarto verso pode dar-me uma cena nova, criar um parêntesis no texto ou sugerir um novo fragmento. Mas eu não sei que quarto verso é esse, porque originalmente não precisava dele”

“À força dos ensaios percebo que aquilo que peço aos actores é uma certa cantiga que já repeti noutros espectáculos”. Aprendeu-o no grupo de teatro amador, em Loulé, de onde é natural, ensinado a “tomar atenção à sílaba tónica de cada palavra e fazer coincidir com essa tónica, a tónica do próprio gesto”. E depois a escola de música onde aprendeu piano e, mais tarde, o Conservatório de Teatro, onde tudo se juntou. Em Mary Poppins há movimentos que indicam cenas. Isso pode não ser perceptível para o espectador, mas para os actores indica um tempo que vem da música para se tornar dematúrgico.

“É assim que nós fazemos no dia-a-dia, mas no teatro pensamos as coisas de outra forma. Ou mesmo que façamos o mesmo, não é uma coisa de que se fale.” Neves-Neves fala de pausas, repetições, reticências, stacatto, de tempo e contratempo. No fundo, de textos que agem como se fossem um mecanismo de construção de uma presença em palco, e de recursos que exigem que o texto seja pensado não como um fim em si mesmo mas como a porta de entrada para uma memória.

E, no entanto, em O Solene Resgate, brevíssimo exercício de notável relojoaria que se apresentou em Junho no Espaço A Ribeira, eram quase 40 actores que, em uníssono na maior parte das vezes, e em 12 minutos, sem falhar, “contavam uma historieta”, mas que historieta. Coisa nenhuma, aliás, porque, no fim, não era dessa “historieta” que nos lembravamos mas de uma toada que, com o tempo, se tornava no único texto que admitíamos existir.

É por isso que Jorge Silva Melo, que o dirigiu em A Morte de Danton (Teatro Nacional D. Maria II, 2012) e lhe deu a ler várias peças, de Copi, de Apollinaire, de Karl Valentin, de Miguel Mihura, ou seja, de autores onde o texto é uma entidade viva, imprevisível mas nem por isso menos formal e construída, diz que os espectáculos de Neves-Neves são dos “mais soltos, mais livres, mais desamparados que tenho visto por cá” porque o autor e encenador é, e a sua escrita com ele, “surpreendente, enigmático, divertido, ligeiro, profundo, analítico, rigoroso, disfarçado de ingénuo, escudando-se na lengalenga infantil, no imaginário pop (ou mesmo sub-pop, como se diz dos sub-20)”.

Mas, autoconfissão de autor ainda à procura de um discurso a que possa chamar seu: “Este lado infantil, às vezes mais ingénuo, é uma protecção”. É sempre tudo mais simples ao início, diz. Sem a “pretensão” de uma mensagem, alimentando-se da “livre associação”, habitando “um descomprometimento que tem a ver com a idade”: “Não sinto que seja ainda um portador de mensagens”. "Ainda" é a palavra-chave.

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