Medicina tradicional chinesa

Como a história antiga e contemporânea nos ensina, o fanatismo gera violência, seja ela física ou apenas emocional

No final dos anos oitenta visitei hospitais chineses e observei a forma como neles era exercida a medicina tradicional, ao lado de um crescente interesse pela medicina ocidental.

Repeti o contacto vinte e cinco anos depois, tendo observado uma permanência da filosofia clínica tradicional. A surpresa que tive ao visitar em Macau uma enorme sala comum de consulta externa, com muitas dezenas de médicos, em espaço acanhado, prestando mais de um milhar de consultas diárias foi aumentada com a confirmação do modelo em Pequim, um quarto de século depois. Constatei então que o mesmo doente vinha à consulta de três em três dias, em média, recebendo terapêutica tradicional em doses calculadas para esse intervalo de tempo. Cada episódio de doença tratada em ambulatório desdobrava-se em 12 a 15 consultas mensais, até ter alta ou morrer. Procurei a explicação para este padrão que naturalmente engorgitava os serviços externos dos hospitais. A melhor explicação que obtive tem a ver com a abordagem oriental ao tratamento das doenças. O médico organiza o tratamento adaptando o doente à doença. Daí as repetidas sessões, as ervas, infusões e terapias não agressivas, por vezes de efeitos contraditórios, mas conjugável para o conceito de adaptação do doente à sua doença. Os resultados são positivos nos casos de somatização de algumas patologias mentais, ou em doenças crónico-degenerativas de longa evolução. Mas certamente pouco eficazes nas doenças de progressão rápida, como a maioria das doenças infecciosas. Ao contactar a muito agressiva terapia ocidental, nomeadamente anti-bacteriana, o médico chinês menos preparado passou a adicionar artilharia pesada a situações que o não requeriam. Quando Portugal administrava o território de Macau foi necessário criar mecanismos de actualização terapêutica para os clínicos recrutados na China, para evitar males maiores.

Esta digressão sobre uma ciência da vida ajusta-se ao comportamento do nosso governo na administração do programa da Troika. Passado o efeito do erro inicial de "ir além da Troika", o governo passou a adoptar a técnica das pequenas doses de informação sobre as medidas a tomar. Uma informação hoje, outra na semana seguinte, sempre antes das datas de decisão obrigatória, na esperança de "preparar o doente" para se adaptar a crescentes patamares de austeridade. Foi assim que tomámos conhecimento de que 2013 seria um ano de cortes de 4% do PIB, depois de 4,5%, depois transferidos para 2014. O que começou por ser provisório na voz do governo (cortes em vencimentos e pensões) passa a definitivo numa subsequente avaliação da Troika. Avanços temerários e irreflectidos são seguidos de recuos impostos pelas inconstitucionalidades. Este percurso sinuoso conduziu a que a inconstitucionalidade declarada nos cortes de dois subsídios mensais revertesse em acréscimos no consumo interno e ofereceu ao governo argumentos, que ele sabe serem fugazes, para alardear optimismo. Novas inconstitucionalidades servirão ao governo para justificar a possível perda dos pequenos ganhos com que hoje exulta. O governo está convencido que isto é gradualismo. É apenas manobrar à vista de terra. Compreensível se ela não se ficasse por aí. A partitura ideológica continua a ser tocada com zelo por Crato. E não é por acaso que Passos Coelho escolhe uma misericórdia para uma longa conferência de imprensa.

O governo fez das regras da medicina tradicional chinesa o seu modelo de conduta. Aparentemente os súbditos estão tranquilos, não dão sinais de revolta. Mas a doença permanece. A economia anémica, a desesperança colectiva (como bem classificou Marçal Grilo), a paciência da cobaia económica do laboratório de eurocratas tudo tem tolerado. O governo entusiasmou-se com o fogo-fátuo de alguns indicadores. Deprimido primeiro, com a perda de companhia, estimulado depois pela coragem da Irlanda, subitamente declara, por Marques Guedes, que um programa cautelar pode até dispensar o apoio dos socialistas. E outros ministros, com a credibilidade de ciganas de "buena dicha", admitem que se possa sair de um programa de ajuda sem recorrer a um programa cautelar. Com voz grossa, em castelhano de Camões, Portas aumenta a parada e proclama "não queremos nem mais tempo, nem mais dinheiro, nem mais Troika"! Mais ainda, Portas anuncia que o Governo quer baixar o IRS a partir de 2015. Não há fome que não dê fartura! Ou seja, o doente rebela-se contra a terapia, sacode as cobertas, levanta-se do catre e marcha em frente. Vê-lo-emos em breve a reclamar uma terapia mais activa, um choque antibiótico sob a forma de investimento, público e europeu, já se vê.

No meio deste festival de pseudo-nacionalismo a várias vozes, surge o realismo. Silva Lopes, independente e insubmisso declara que o acordo da Troika tem sido um completo falhanço: o défice orçamental, o crescimento e o desemprego têm resultados sempre mais negativos que o previsto e que novo ciclo de espiral recessiva nos espera. Contra os optimistas incontinentes Silva Lopes adverte que poderemos continuar em crescimento negativo no próximo ano. Desmonta o sucesso exportador, retirando ao crescimento de 5% quatro pontos de petróleo refinado com baixo valor acrescentado e denuncia o festejo inaceitável de uma baixa de desemprego gerada apenas pela emigração: em nove meses, 125 mil portugueses, outrora empregáveis. A tudo isto o Governo fará orelhas moucas.

Preocupante esta oscilação ciclotímica de humores, esta espiral de declarações impreparadas, sem estratégia nem controlo, em que cada um diz o que lhe apetece e todos competem a anunciar, como rouxinóis, um amanhã florido! É certo que o governo, devido ao famoso multiplicador negativo, conta com a complacência da Troika para ficar pelos 4,5 ou mesmo 5% de défice em 2014, em vez dos 4% iniciais. Mas basta ler o último relatório do FMI, certamente o mais experiente dos interventores, para se descortinar que o que está em causa, ainda e sempre, são o que eles consideram salários elevados. A produtividade é para eles uma noção aritmética, um simples quociente, pouco importando a qualidade dos recursos humanos que se esvaem, a tristeza contagiante, a dor inapagável, a perda de energia de uma sociedade que se sente refém de fanatismos sem saída.

Como a história antiga e contemporânea nos ensina, o fanatismo gera violência, seja ela física ou apenas emocional.

Deputado do PS ao Parlamento Europeu

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