Criminalização do mercado de órgãos: contra a mercadorização do corpo humano

O corpo humano não é uma mercadoria. A doação é a única solução plausível

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Keith Bedford/Reuters

Será concebível vender um órgão humano? Não, por uma razão muito simples: o corpo humano não é mercadorizável.

Só o Estado através do direito positivo pode sancionar ou criminalizar a venda de órgãos, pois qualquer venda de bens é uma construção social sancionada por uma entidade artificial, o próprio Estado. Imagine-se, hipoteticamente, que o Estado sancionava a venda de órgão. Não seria isso admitir que a Justiça se confunde com o direito positivo? Os direitos inalienáveis e invioláveis do ser humano protegem-no da discricionariedade do Estado. O princípio da dignidade humana não é resultado da lei, antecede-a e o direito tem que ser uma construção ética que enquadre a acção humana.

Por outro lado, o facto de a vida ter valor não implica que esse valor seja passível de ser quantificado. A partir do momento em que podemos trocar um órgão por um determinado número de moedas que podem ser convertidas em algo tão ordinário quanto pastilhas a situação torna-se risível: a vida, e por isso a saúde, não tem preço porque o seu valor não é comensurável. É uma aberração atribuir um preço ao corpo humano.

Mais: a legalização deste tipo de comércio pode minorar o tráfico de seres humanos? Não. Nem isso. Veja-se o caso da legalização da prostituição na Holanda, que, claramente, não diminuiu a ocorrência de tráfico. Pelo contrário, com a legalização por uns e não outros, aumentaram os incentivos para a ocorrência de tráfico humano devido à diferença de quadros jurídicos nacionais. O mercado é permeável e só as acções concertadas serão eficazes, ou seja, o verdadeiro problema está na legislação internacional, já que não existe um sistema hierárquico e coercivo capaz de criminalizar esta prática a este nível.

Urge, portanto, harmonizar os diferentes quadros jurídicos impedindo a exploração daqueles que nada têm pelos que mais possuem (e.g. tráfico de órgãos no Kosovo ou a “aldeia dos rins” na Índia). A solução passa, assim, por criar um quadro jurídico internacional capaz de criminalizar esta actividade, dando-lhe aquilo que ainda falta ao direito internacional – coercibilidade. Não obstante, a questão que se poderá colocar da direcção da responsabilidade penal é pertinente: quem deve ser responsabilizado? O vendedor ou o comprador? A resposta não é fácil pelo que não será despiciendo defender que a responsabilidade deverá ser partilhada por ambos.

Mas resta-nos o mais importante: a causa. Como é que se poderia criar um sistema de verdadeiro altruísmo que diminua os incentivos da venda de órgãos, possibilitando o acesso aos mesmos através de um mecanismo de doações organizado? A resposta a esta questão, também, é simples: o sistema de doações português. Todos nós somos potenciais doadores. Se existisse um sistema coordenado a nível europeu nem o tráfico nem as listas de espera seriam um problema. A doação aquando da morte do dador é a melhor solução pelo princípio constitucional da dignidade do ser humano, pois mantém a sua integridade física, que é inviolável.

Todavia, os mais optimistas poderão argumentar que o avanço da ciência e da tecnologia nos permitirá usufruir de órgãos criados em laboratório, contudo a verdade é que este tipo de tecnologias demorarão algum tempo a ser acessíveis à população dos países mais desenvolvidos e mais tempo ainda a ser universalmente acessíveis, se é que algum dia o serão. A doação continuará a ser a única forma de salvar a vida de pessoas que precisem de um transplante.

O corpo humano não é uma mercadoria. A doação é a única solução plausível.

*O texto não vincula o NOVA Debate, expressando exclusivamente a opinião do autor. NOVA Debate – Juntamos Saber

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