De 15 em 15 dias

É um ritual de velhos consumidores de heroína. Manuela está há 20 anos num programa de substituição opiácea

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Lara Jacinto

O perfume precede-a. É uma senhora aprumada. Decote discreto, unhas pintadas, nem um cabelo fora do sítio.

Não tem uma profissão. Aos 49 anos, no seu currículo só entra o Programa Vida Emprego, suposta oportunidade de pensar a reinserção social e profissional como parte de um tratamento, mediante estágio de integração socioprofissional ou da criação do próprio emprego.

Tinha 16 anos quando o namorado a desafiou: “Experimenta que é bom!” E ela experimentou. “Até era bom, mas deixou de ser bom, passou a ser uma necessidade.” Primeiro, heroína. Depois, speedball, mistura de cocaína e de heroína, uma a acelerar a batida cardíaca, outra a desacelerá-la.

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Ana Cristina Pereira é jornalista do PÚBLICO

Está no Centro de Respostas Integradas – Porto Ocidental, estrutura pública que dispõe de equipas técnicas especializadas na prevenção, no tratamento, na reinserção e na redução de riscos e minimização de danos. Veio buscar metadona. De 15 em 15 dias, está neste pré-fabricado. Toma uma dose todas as manhãs. A metadona actua 24 horas, muitíssimo mais tempo do que a heroína.

Entrou no programa em 1993. “Nunca mais fiz consumos. Mentalizei-me que não precisava da heroína para nada, que a metadona fazia efeito. Deixei de beber e tudo. Cortei com tudo, tudo. Para levar as doses para casa, tinha de ser. Só tomo a metadona. Estou viciada em metadona…”

No princípio, todos os dias, muito cedo, a mãe ia com ela levantar o medicamento. Com o tempo, ela conquistou o direito de vir aqui sozinha. “Tenho essa confiança, mas claro que ainda me fazem testes para ver se não consumo outras coisas …”

Era suposto diminuir a dose diária, de forma progressiva, até se livrar da metadona. Está a demorar. Tem várias doenças. Já várias vezes teve de tomar medicamentos que cortavam o efeito daquele. A dose aumentou “imenso”. Depois de cada aumento, um lento processo de redução.

Pode não parecer a quem está fora, mas aqui dentro é encarada como um sucesso. Deixou de fazer trinta por uma linha para calar a ressaca. Tantos quartos alugados e vãos de escada dividiu com o namorado que um dia lhe disse: “Experimenta que é bom!” Com a metadona, ele regressou a casa dos pais dele e ela aos dela. “O meu pai é o desterro da louça. Dou-me muito mal com ele. E dou-me muito bem com a minha mãe. Ela tem um linfoma. Não pode fazer muitos trabalhos. Eu ajudo-a.”

Chama-se Manuela. Está envelhecida e, ao mesmo tempo, de algum modo, atada a uma espécie de eterna adolescência.

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