Muros brancos, povo mudo

Claro que todos já vimos edifícios cujas paredes foram rabiscadas indiscriminadamente. Mas a solução é colocar um polícia a cada esquina? A solução é uma cidade de muros brancos?

O medo. Sempre ele. O medo como regulador da nossa relação com os outros e com o mundo à nossa volta. O medo do que não se conhece, não se compreende, não se consegue enquadrar.

O medo como álibi para implantar políticas como a que o Governo quer agora aprovar através de uma proposta de lei que visa punir os autores de graffiti. Se a lei for aprovada, quem quiser fazer um graffito, seja um qualquer arabesco ou um graffito figurativo complexo, ou afixar simplesmente um cartaz na parede, terá de solicitar previamente uma licença à respectiva câmara municipal, apresentando também o projecto do que pretende desenhar.

Argumento para esta proposta de lei: o sentimento de insegurança das populações que associarão estas actividades à marginalidade. O argumento é velho. Quase todas as expressões que emergiram sem veleidades artísticas e que brotaram nas ruas conheceram o mesmo tipo de conflitos. Por norma são olhadas como manifestações dos excluídos, principalmente em sociedades como a portuguesa, com dificuldade em representar e integrar a diferença.

Apesar da legitimação dos últimos anos, os graffiti são ainda um universo de difícil apreensão, atreito a confusões, corrente expressiva de difícil catalogação, atravessado por estilos diferenciados, podendo ir do traço mais gratuito à sofisticação.

É um território de tensões ambivalentes entre legalidade e ilegalidade, reivindicação da expressão individual e a gestão do colectivo, entre a galeria de arte e a rua vista como galeria a céu aberto, entre a vontade de reconhecimento e o anonimato. 

Acaba por ser também zona conflitual entre quem possui capital, e dessa forma pode comprar legalmente o acesso à comunicação na cidade inundando-a com as imagens que lhe apetece e que também não escolhemos, e aqueles que não detendo capital são impossibilitados de o fazer.

É um fenómeno que contempla questões artísticas, urbanísticas, sociais, políticas e económicas. É uma realidade que já tem uma história longa em Portugal, nomeadamente a partir de 1974, quando a abertura política permitiu que a rua se tornasse num espaço de expressão.

Se, por um lado, o graffito mais puro mantém uma presença indiscriminada na rua, por outro, existe cada vez mais a transição para espaços expositivos ou enquadramentos institucionais. Existe um cruzamento infindável de técnicas, estilos e meios, agrupados em novos chavões como neo-graffiti, pós-graffiti ou street art, que traduz, afinal, que graffiti é uma corrente expressiva diversa.

Entendimento diferente parece ter o Governo através da sua proposta de lei. Semelhante intervenção poderá propiciar o contrário do pretendido (na maior parte destes casos a repressão funciona como convite à transgressão), ao mesmo tempo que deitará por terra um instável sistema de auto-regulação que emerge do próprio universo dos graffiti – é verdade que continuam a ver-se paredes pintalgadas de forma errante, mas também existe quem cumpra cada vez mais os códigos informais que proclamam que apenas as zonas devolutas devem ser alvo de apropriações.

Significa que não deve existir intervenção pública? Não. Devem-se claramente procurar acertos, propor enquadramentos e apostar na pedagogia, tendo em atenção as diferentes tensões em jogo. Mas a proposta de lei é o regresso às cavernas, quando nos últimos anos haviam sido dados passos no sentido contrário.

Nesta, como em outras questões análogas, entram em conflito duas noções diferentes de sociedade: há quem acredite numa cidade higiénica, idealizada, sem tensão. Resta saber se não é esse movimento que acaba por criar conflito, resultante de uma forma de estar baseada no medo. Um medo mais percepcionado do que real, que acaba por ser sublimado com ideias de leis semelhantes.

Claro que todos já vimos edifícios cujas paredes foram rabiscadas indiscriminadamente. Mas a solução é colocar um polícia a cada esquina? A solução é uma cidade de muros brancos? Não será essa apenas uma forma de criar a ilusão de que se está a transformar alguma coisa sem que nada de essencial se resolva?

Nessa ânsia de querer ordenar a vida urbana, sem qualquer bom senso, não estaremos ao mesmo tempo a sacrificar o que nela existe de inesperado, audacioso e espontâneo, trocando isso por uma vaga ideia de segurança? As paredes da cidade devolvem-nos desarrumação? Sim. Mas também poesia, amor, desejos, utopia. É verdade que muitas das paredes que conhecemos gritam apenas na nossa direcção. Mas o contrário disso não tem de ser o silêncio.

As ruas da cidade são a anatomia da nossa condição urbana, escrevia nestas páginas o geógrafo João Seixas numa notável crónica – Paredes vivas (25-11-2012). É isso mesmo. É verdade que parte desse corpo está muito desgastado, mas uma política de muros brancos poderá muito bem anular as partes do corpo saudáveis. Ainda bem que existem algumas anotações nas paredes das cidades, de contrário “muros brancos, povo mudo”, pode ler-se numa delas.
 
 
 
 

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